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PREFÁCIO PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO

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        SEGUNDO a lenda clássica, a Deusa Atenas teve certa vez como servidora consagrada a seu serviço uma linda virgem chamada Medusa, a qual, tornando-se vaidosa por causa de sua beleza e descontente com o serviço puro prestado à jovem Deusa, introduziu a insensatez e a depravação no próprio santuário do Templo no qual ela costumava prestar serviço religioso. Em conseqüência disso, um terrível destino se abateu sobre ela. O lindo rosto, que foi a causa de sua queda, assumiu um aspecto tão horrível que destruía e petrificava todos os que olhassem para ele; os cachos de seu cabelo, que eram o principal motivo de seu orgulho, foram transformados em víboras, e suas mãos que haviam prestado o serviço sagrado tornaram-se como as garras de uma ave de rapina. Transformada, assim, em uma Górgone [N.T.: Górgones: Três mulheres, personagens mitológicas – Esteno, Euríale e Medusa – que possuem víboras por cabelos e transformam em pedra quem as encara. Também, figurativamente, uma mulher repulsiva ou perversa.], ela deu origem a monstros, e por algum tempo devastou a terra. Finalmente, o herói Perseu, “Filho de Deus”, encarregado por Atenas e Hermes, e por eles armado com asas, com espada e com escudo, matou a terrível criatura e decepou sua cabeça venenosa. Essa façanha – ela mesma repleta de grandes perigos – foi seguida pela realização de outra não menos difícil. Andrômeda, filha do rei etíope, tendo sofrido a fatalidade de ser aprisionada por um dragão, o qual há muito devastava o litoral do reino de seu pai,

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havia sido acorrentada a uma pedra na beira do mar e estava prestes a ser devorada, quando Perseu – guiado pelos seres divinos para a cena do pretendido sacrifício – derrotou o Dragão e libertou a princesa. E, tendo conquistado seu amor e a esposado, o filho de Zeus tirou-a do reino de seu pai e a levou para os céus, para brilhar para sempre ao seu lado, redimida, imortal e gloriosa.

        Ora, os nomes Medusa e Andrômeda possuem uma raiz comum, e significam respectivamente “guardiã” ou “casa” da Sabedoria, e “regente” ou “companheira” do Homem. São, portanto, nomes representativos, o primeiro da Igreja, e o segundo da Alma. E os dois mitos nos quais aquelas que têm esses nomes são as heroínas, juntos constituem uma profecia – ou verdade perene – que tem especial aplicação para a época presente. Medusa é aquele sistema que, sendo originalmente puro e belo – a Igreja de Deus e a guardiã dos Mistérios – tornou-se, devido à corrupção e à idolatria, “sustentáculo de tudo o que é impuro”, e a mãe de filhos monstruosos. E, além disso, da mesma forma que a anteriormente encantadora face de Medusa, a Doutrina que originalmente possuía o selo divino e refletia a Própria Sabedoria Celestial, transformou-se, por meio da degradação da Igreja, em Dogma tão pernicioso e mortal a ponto de arruinar e destruir a razão de todos aqueles que caem sob seu controle. E o Perseu do mito é a verdadeira Humanidade [N.T.: Natureza do Ser Humano.] de fato nascida na terra, mas filha dos céus – que dotada pela Sabedoria e pelo Entendimento, com as asas da Coragem, com o escudo da Intuição, e com a espada da Ciência, partiu para derrotar e destruir a corrupta Igreja e

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libertar o mundo de sua influência ruinosa. Mas não basta que a Górgone seja morta. Uma tarefa ainda maior e mais gloriosa espera para ser realizada. Andrômeda, a Alma, a melhor parte do Homem, está a ponto de ser inteiramente devorada pelo dragão maligno da Negação, que é o agente da natureza inferior, e o destruidor de todas as esperanças da humanidade. Seu nome – idêntico aos termos com os quais é descrita a primeira Mulher da história dos hebreus – a aponta como a companheira e regente do homem; sua paternidade indica a origem da Alma, que nasce do Fogo astral ou Éter, simbolizado pela terra da Etiópia; os grilhões de bronze com que ela é presa à rocha são o símbolo da atual escravidão do Divino no homem a sua parte material; e a sua redenção, casamento, e exaltação pelo herói Perseu, prenunciam o coroamento e a realização final do Filho de Deus, o qual não é outra coisa senão o Ser Humano Espiritual fortalecido e sustentado pela Sabedoria e pelo Pensamento. De nada servem, contra o monstro que ameaça aniquilar a Alma, os velhos recursos de terrorismo, perseguição e servidão por meio dos quais a Igreja corrupta busca subjugar a humanidade a seu credo. O Libertador da Alma deve ser livre como o ar, nascido nas asas de um Pensamento que não conhece qualquer medo e repressão, e armado com a espada – de dois gumes e voltada para todas as direções – de um conhecimento igualmente potente tanto para atacar como para defender. E ele deve ser sábio e livre em todos os sentidos, não inclinado apenas para a destruição, mas igualmente para a salvação, e sua espada deve ser tão apta para golpear os grilhões dos membros de Andrômeda, quanto para desferir o golpe mortal à Górgone. Não basta

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que ele leve ao Olimpo a cabeça morta de Medusa; ele precisa levar para lá também uma Noiva viva. Sua missão não é apenas satisfazer a Mente, mas também contentar o Coração. O Intelecto – o “Homem” – é aquele que empunha a espada do libertador; e a Intuição – a “Mulher” – é aquela que cria e constrói. Não fosse pelo trabalho dela a bravura (e destreza) de Perseu seria vã, e seus feitos sem objetivo ou recompensa. O herói traz consigo as conquistas (da luta) e os leva para sua tenda, e pendura seu escudo e sua lança ao lado do fogo da lareira. Todas as honras são dadas ao guerreiro, quer como iconoclasta, quer como cientista, e como purificador da terra. Seu trabalho, contudo, é apenas no sentido de iniciar, de preparar a senda, abrindo o caminho para Ela que não carrega nem tocha e nem arma de guerra. Por ela é o intelecto coroado; por ela é a humanidade completada; nela o Filho de Zeus encontra sua eterna e suprema recompensa; pois ela é o santuário, ao mesmo tempo da mais divina Sabedoria e do perfeito Amor.

        É evidente, assim, que a estória (lenda) clássica – de forma idêntica em substância às profecias alegóricas das escrituras hebraicas e cristãs – exibe a obra do Salvador ou Libertador, como tendo um duplo caráter. Como Zeus, o Pai dos Espíritos, de quem ele é filho, o Intelecto (Razão) é ao mesmo tempo Purificador e Redentor. Uma vez realizada a tarefa de Destruição, aquela de Reconstrução deve iniciar. A primeira já está quase completa, mas até agora ninguém parece ter sonhado que a última seja possível. A época atual testemunhou o declínio e a queda de um sistema que, depois de ter-se mantido com sucesso por cerca de dezoito séculos contra inúmeros perigos de ataques externos,

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e de facções internas, finalmente sucumbiu diante da união das armas da crítica científica e moral. Mas essa própria derrubada, essa própria demolição, cria um novo vazio. E da existência desse vazio dão amplo testemunho as atuais condições do mundo e as apreensões e ânsias que se expressam por todos os lugares. Em todas as partes os homens se perguntam: “Quem nos mostrará algum bem?” A quem ou ao que recorreremos em busca de conselho e de salvação da Perdição, se o antigo sistema sucumbir? Debaixo de que teto nos abrigaremos se todo o Templo for demolido e “não restar pedra sobre pedra que não seja derribada?” [N.T.: Mateus 24:2] Que caminho poderá nos levar a Sião se a velha estrada for soterrada pela avalanche? O Agnosticismo e o Pessimismo tomaram conta dos melhores intelectos da presente época. A consciência foi eclipsada pelo auto-interesse, a mente obscurecida pela matéria, e a percepção do homem de sua natureza superior, e das necessidades dessa última, foi suprimida em favor da inferior. A regra de conduta entre os homens rapidamente está se tornando aquela da fera predadora: – a regra do eu antes de tudo; e a do eu mundano, bruto e ignóbil. Por toda parte o significado e a utilização da própria vida estão sendo seriamente questionados; por toda parte busca-se sustentar a humanidade por meios que são em si mesmos corruptores da humanidade; por toda parte as fontes que alimentam o grande oceano da sociedade humana estão jorrando e um dilúvio é iminente, cuja altura, extensão e duração ninguém pode prever. E ainda em nenhum lugar se pode perceber a Arca, refugiando-se na qual a humanidade possa superar e sobreviver à inundação.

        Não obstante, essa Arca tão ansiosamente buscada, essa Senda

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tão dolorosamente procurada, esse trabalho de Reconstrução tão urgentemente necessário, todos podem ser alcançados pelo homem. A certeza de sua conquista está imbricada na própria natureza da existência, e está ratificada em todas as expressões dadas aos mistérios dessa natureza, desde os primórdios do mundo.

        O principal objetivo da presente obra é, portanto, não de demolir, mas de reconstruir. O necessário trabalho de destruição já foi amplamente realizado. O antigo Templo foi posto ao chão e saqueado, e os “filhos de Israel” foram levados cativos para a “Babilônia” – o nome místico da fortaleza do Materialismo. Como está escrito: “E todos os objetos da casa de Deus” – isto é, as doutrinas da Igreja – “grandes e pequenos, e os tesouros da casa do Senhor, e os tesouros do rei e de seus príncipes, tudo isso ele levou para Babilônia. E queimaram a casa de Deus, e demoliram os muros de Jerusalém” – isto é, da Alma – “e incendiaram todos os seus palácios, e destruíram todos os seus vasos preciosos”. [N.T.: 2 Crônicas 36:18-19]

        É tempo agora de encenar o segundo e último ato do drama profético; – “Assim falou Ciro,” – isto é, KurioV, o Senhor, o Cristo – “o Deus do céu entregou-me todos os reinos da terra; e encarregou-me de Lhe edificar novamente um Templo em Jerusalém”. “Quem dentre vós irá para lá e construirá de novo o Templo do Senhor Deus de Israel?” [N.T.: 2 Crônicas 36:23]

        Nessas palavras está expressa a intenção dos escritores deste livro. E se preferiram não revelar seus

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nomes não é porque não confiam na genuinidade de sua tarefa ou na integridade de seu trabalho, nem porque se encolhem diante da responsabilidade assumida; mas para que seu trabalho possa repousar sobre seus próprios méritos e não sobre os deles – reais ou supostos – ou seja, a fim de que possa ser julgado e não pré-julgado de uma maneira ou outra. Essa discrição está de acordo com todo o seu conteúdo. Pois o único critério para o qual faz apelo em seu favor é o Entendimento, e isso com o fundamento de que é algo contrário à natureza da Verdade prevalecer por força de autoridade, ou qualquer outra coisa que não seja o entendimento; uma vez que a Verdade – por mais transcendente que possa ser – tem sua verificação na Mente, e nenhuma outra testificação (comprovação) pode lhe servir. Se a verdade não for demonstrável para a mente, é evidente que o homem, que é essencialmente mente, e produto da mente, não a pode reconhecer e apropriar-se dela. O que é indispensável é que se apele para toda a mente, e não apenas para um de seus departamentos.

        Neste livro nada de novo é dito; mas aquilo que é antigo – tão antigo que a coisa em si ou o seu significado foram perdidos – é restaurado e explicado. Contudo, muito embora não aceitem nem as exposições de uma ortodoxia conservadora, nem as conclusões de uma crítica destrutiva, seus escritores reconhecem os serviços prestados por ambos para a causa da Verdade. Pois – como os puritanos que cobriram e esconderam, com reboco e de outros modos, imagens e decorações sagradas que para eles eram ofensivas – a ortodoxia pelo menos conservou através das idades os símbolos que contêm a Verdade, debaixo dos erros com os quais

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os cobriram. E a crítica destrutiva, por mais que seja brutalmente descrente, pelo próprio ato de destruição, limpou o caminho para a reconstrução. Ela cumpriu a função do homem – aquela de análise – e tornou possível a função da mulher – aquela de síntese. E isso está de acordo com a ordem Divina.

        Tanto em natureza quanto em método, portanto, este livro é principalmente interpretativo, e, conseqüentemente, reconciliatório. E é assim não apenas especificamente em relação aos sistemas hebraico, cristão, oriental e clássico, mas também com relação ao pensamento moderno e à experiência humana em geral. Ele objetiva fazer a reconciliação (reunificação) da Mente e do Coração por meio da união da Caridade – isto é, a Religião – com a Verdade – isto é, a Ciência. Ele busca assegurar ao homem que seus melhores e mais poderosos amigos em todos os aspectos são a Liberdade e a Razão, bem como que seus piores inimigos são a Ignorância e o Medo; e que enquanto seu pensamento não for suficientemente livre e forte para fazê-lo voar até o “céu”, do mesmo modo que levá-lo até as “partes mais baixas da terra”, ele não é um verdadeiro Filho de Hermes, cujo nome simboliza o Pensamento, o qual, porém, também é, em sua suprema vocação, o Mensageiro e Ministro de Deus “Pai”.

 

        ADVENTO 1881.

 

 

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