A FALECIDA DRA The Late Mrs. Anna Kingsford, M.D. – Helena Petrovna Blavatsky

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6. A RODA E A CRUZ

 

Om mani padme hum – Christi simus non nostri

 

            A Roda e a Cruz

A fusão do Budismo com o Cristianismo

Fonte de uma fé (fides, fidelidade) verdadeira

Fidelidade na sintonia com a Luz

A Luz no Alto e a Luz dentro de nós

            A Roda e a Cruz

O Buda e o Cristo em nós, esperança de Glória

Uma doutrina simples, fraterna e lógica

Matriz da nova cultura do Humanitarismo

Base das novas instituições para harmonia no mundo

 

            “Da união espiritual na fé una do Buda e do Cristo nascerá a esperada redenção do mundo”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), p. 252]

 

            “Em resumo, não são dois Evangelhos, mas dois aspectos, o externo e o interno, de um mesmo Evangelho. Pois o Budismo encontra sua tradução e complementação no Cristianismo, e o Cristianismo encontra sua concepção e seu alicerce no Budismo”. (A Verdade Viva no Cristianismo, pp. 26-27)

 

 

VIVIANE: O que representa esse símbolo da Roda e da Cruz juntas?

 

ARNALDO: Esse símbolo é uma composição unindo a Roda do Budismo no centro da Cruz do Cristianismo. A Roda e a Cruz juntas reúnem os significados presentes nesses dois símbolos, que interpretamos antes separadamente, e que unidos representam, naturalmente, o Cristianismo Budista.

            O símbolo da Roda e da Cruz representa o sistema filosófico religioso completo, que é constituído, sobretudo, pelas mensagens do Buda Sidharta Gautama e do Cristo Jesus. Esse sistema completo, segundo os ensinamentos do Evangelho da Interpretação, é a mensagem do Cristianismo original, o qual contava necessariamente com a base de seus precursores, especialmente do Budismo e do Pitagorianismo.

 

 

            “Do mesmo modo que não fazia parte do projeto dos Evangelhos representar o percurso inteiro do Homem Regenerado, também não fazia parte desse projeto fornecer, no que diz respeito à vida e doutrina religiosa, um sistema integral e completo, independentemente dos que o antecederam.

            Por ter uma relação especial com o Coração e o Espírito do Homem, e dessa forma com o núcleo da célula e com o Santo dos Santos do Tabernáculo, o Cristianismo, em sua concepção original, delegou a regeneração da Mente e do Corpo (...), ou o dualismo exterior do Microcosmo, a sistemas já existentes e amplamente conhecidos e praticados.

            Esses sistemas eram dois em número, ou melhor, eram como dois modos ou expressões do sistema uno, cujo estabelecimento constituiu a “Mensagem” que antecedeu o Cristianismo pelo período cíclico de seiscentos anos. Esse sistema era a Mensagem na qual os “Anjos” estiveram representados em Gautama Buda e Pitágoras”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), pp. 249-250]

 

 

 

VIVIANE: Por que unir Cristianismo e Budismo?

 

ARNALDO: Tratar o Cristianismo e o Budismo como coisas separadas é cometer um grave equívoco. Desde o início do Cristianismo, conforme lemos no Evangelho da Interpretação, ele não pode ser considerado como uma tradição independente de seus precursores, pois estes constituem os seus necessários fundamentos. E também, coerentemente, podemos, pelo menos em nossos dias, afirmar que não existe verdadeiro Budismo sem a sua necessária complementação, trazida pela mensagem do Cristo Jesus.

            Na medida em que compreendemos os ensinamentos do Buda e do Cristo como ensinamentos necessariamente complementares, que eles fazem parte de um todo harmônico e que, portanto, dependem um do outro para sua completude, nessa mesma medida vamos podendo afastar de ambas as tradições degeneradas o entulho perverso das deturpações materialistas e idólatras do sacerdotalismo.

            Ao dizer isso, não devemos ignorar a tradição judaica, a tradição pitagórica e a tradição dos Mistérios greco-romanos, que também são partes integrantes necessárias do que podemos, em sentido amplo, denominar de Cristianismo Budista. Pelo contrário, devemos aplicar essa mesma lógica a esses ensinamentos, conforme também podemos ler no Evangelho da Interpretação:

 

            “Uma vez erguido o véu do simbolismo da face divina da Verdade, todas as Igrejas são similares, e a doutrina básica de todas é idêntica (...). Grega, Hermética, Budista, Vedantina, Cristã – todas essas Lojas dos Mistérios são essencialmente unas e são idênticas em doutrina. (...)

            Nós sustentamos que nenhum credo eclesiástico isolado é compreensível somente por si mesmo, se não for interpretado com o auxílio de seus antecessores e de seus contemporâneos”. [The Life of Anna Kingsford (A Vida de Anna Kingsford), vol. II, pp. 123-124]

 

 

VIVIANE: Que deturpação materialista ou entulho são esses, como você diz, que atrapalham uma visão clara da verdadeira religião?

 

ARNALDO: O principal aspecto dessa deturpação é, como já referimos, a materialização dos símbolos sagrados. Essa deturpação está indicada na frase do Apóstolo Paulo na Segunda Carta aos Coríntios: “a letra mata, mas o espírito vivifica” (2 Coríntios, 3:6).

            Isso significa não compreender o fato fundamental de que o ensinamento das Escrituras Sagradas quase sempre está apresentado de forma alegórica e não de forma literal. Falamos de praticamente todas as Bíblias do mundo, quer do Oriente quer do Ocidente, em todas as grandes tradições – não apenas no Cristianismo e no Budismo, mas também no Hinduísmo, no Taoísmo, no Zoroastrianismo, no Confucionismo, no Judaísmo, no Islamismo e assim por diante.

            Esse ensinamento diz respeito, sobretudo, às nossas Almas, aos nossos desafios e necessidades espirituais e não a fatos e personagens históricos. Essa informação está apresentada de forma clara e categórica na literatura do Evangelho da Interpretação – que resgata a verdadeira interpretação das Bíblias do mundo, especialmente das tradições do Ocidente.

            Assim, se tomarmos o exemplo de uma Escritura Sagrada, nesse caso o Bhagavad Gita, da tradição hindu, não poderemos fazer uma leitura literal dos seus símbolos principais, tais como: o sagrado cocheiro Senhor Krishna, seu ardente aprendiz Arjuna, o carro de guerra puxado pelos cavalos, o campo de batalha, os familiares que chefiam o exército adversário e assim por diante, pois tudo isso são alegorias de conhecimentos sagrados que dizem respeito à nossa constituição interna e às questões pertinentes ao desenvolvimento da Alma do ser humano.

            Da mesma forma, em perfeita analogia, precisamos interpretar as Escrituras Sagradas das demais grandes tradições e, no caso aqui presente, das tradições do Ocidente. Se fizermos uma leitura literal, materializando os símbolos sagrados, cometeremos o terrível pecado da idolatria, que resulta, em primeiro lugar, na morte espiritual e, em consequência, na morte e no derramamento de sangue no mundo, quer seja o sangue humano ou o sangue dos nossos irmãos menores, os animais.

            Mesmo nos ensinamentos do Buda Sidharta Gautama, que procuram se sustentar filosoficamente, sobretudo, na força intrínseca de sua lógica e veracidade, se esse cuidado não for tomado, haverá – como de fato em muitos casos há – a leitura literal, a deturpação e a idolatria, como podemos facilmente constatar ao observarmos a existência de tantos monges que não adotam e fazem pouco do vegetarianismo, entre outras tantas deturpações da idolatria gerada pelo sacerdotalismo.

            Um exemplo de idolatria resultante da leitura literal é quando se perde a noção da concepção alegórica da reencarnação em corpos animais dos mais diferentes tipos. Quando se fala em reencarnação como esse ou aquele animal faz-se, na verdade, uma referência às qualidades daquele animal que estarão presentes na próxima vida, e não do próprio animal.

            Da mesma forma, na Bíblia, quando se fala em sacrifício de determinado animal sem máculas está se referindo às características puras das virtudes representadas por aquele animal, que devem estar presentes na vida e no sacrifício ofertado à divindade, e não na morte do animal. O animal sem mácula é um símbolo das virtudes que devem ser ofertadas à Divindade e que são os sacrifícios que agradam a Deus, ao invés do sangue dos nossos irmãos menores, que somente agradam aos seres verdadeiramente infernais.

            Esses são, caracteristicamente, ensinamentos alegóricos, que quando tomados literalmente resultam em equívocos de consequências desastrosas.

 

 

            “Quão perniciosa é a doutrina da redenção (ou reconciliação) vicária, conforme ela é comumente aceita, é algo que pode ser visto pelas atuais condições do mundo: intelectualmente, moralmente e espiritualmente, não menos do que fisicamente. O homem sempre se constrói segundo a imagem de seu Deus, isto é, segundo a sua idéia de Deus. E acreditando em um Deus que é injusto, egoísta e cruel, o homem não pode ser senão injusto, egoísta e cruel.

            É precisamente essa má representação do caráter divino, e essa perversão da verdadeira e da única possível doutrina da reconciliação ou redenção, em uma doutrina que faz a salvação do homem um processo externo a si mesmo, e dependente da ação de outro que não ele mesmo, que, por meio da falsificação do Cristianismo, provocou o seu fracasso. E, ao invés de um mundo ordenado por princípios de justiça, simpatia e pureza, nos legou um mundo de más ações, de egoísmo e de sensualismo.

            De acordo com o verdadeiro Evangelho, conforme declarado pelos profetas, a substância da humanidade não é material e criada, mas sim espiritual e divina. E o homem se eleva além de sua natureza inferior até sua natureza superior ao subordinar os primeiros aos últimos, elevando-se assim totalmente ao superior, tornando-se com isso divino – pois entre Espírito e Matéria não há linha fronteiriça. Esse conhecimento era o tesouro sem preço do qual Israel, ao fugir ou libertar-se, “despojou os egípcios” (Êxodo, 12:36). Esse era o grande segredo de todos os sagrados mistérios desde o princípio.

            Ao contrário desse, trata-se de um falso evangelho, aquele que tendo origem nos sacerdotes, e desafiando ao mesmo tempo o intelecto e a intuição, atribui a salvação a uma operação vicária, e, ao invés do sacrifício de nossa própria natureza inferior para a nossa natureza superior, e de nós mesmos para os demais, insiste no sacrifício de nossa natureza superior para a inferior, e dos outros para nós mesmos.

            É dessa inversão da ordem divina que o hábito de comer carne e a vivissecção – aquela mais infernal de todas as práticas que sugiram do abismo sem fundo da natureza inferior do homem – são os diretos e inevitáveis resultados. E até que a ordem divina seja restaurada, tanto em ato quanto em pensamento, pela renúncia da doutrina do sacrifício vicário, conforme comumente sustentado, e pela conseqüente reabilitação do caráter de Deus, todos os nossos esforços de melhoramento devem ser em vão; nossa civilização será tão somente uma falsificação, um simulacro desse termo”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo), capítulo O Vegetarianismo e a Bíblia, pp. 222-223]
 

 

 

VIVIANE: Vemos isso também no Cristianismo.

 

ARNALDO: Na seara do ensinamento do Cristo Jesus o mesmo ocorre e em escala muito maior. Isso porque a Bíblia, como já afirmamos, em tudo aquilo que é espiritualmente importante, é uma grande parábola, um grande ensinamento alegórico desde o Gênesis, passando pelos Profetas, pelos Evangelhos, pelas Cartas e no Apocalipse. Em tudo que é importante ela nos traz o ensinamento sob a forma de parábolas e alegorias, como vemos nas palavras do Evangelho de Mateus:

 

            “Todas estas coisas falou Jesus às multidões por parábolas, e sem parábolas nada (*) lhes falava”. (Mateus, 13:34) (*) Grifo é nosso.

 

            É oportuno destacar a ênfase do evangelista ao deixar claro que o Mestre, para o público, NADA falava que não fosse em parábolas.

 

 

            “A Bíblia, em síntese, pode ser definida como uma coleção de parábolas narrando a história da Alma, desde sua primeira descida na matéria, até o seu retorno final para sua condição original de puro espírito. E como a Alma passa pelo mesmo processo quer se trate de uma só ou de muitas – seja uma pessoa, uma igreja, uma raça, ou mesmo o universo como um todo – a narrativa que descreve, ou a parábola que representa a história de um, igualmente o faz para todos. E os mesmos termos, que são três em número, abrangem todo o processo.

            Esses termos são Geração, Degeneração e Regeneração, e esses, portanto, sendo aplicados à Alma, são o tema da Bíblia, conforme agora mostraremos, e não a história física, ou qualquer pessoa ou povo seja lá qual for, muito embora sejam descritos em termos derivados de pessoas ou de um povo. E tomar tais pessoas, povos ou um outro símbolo por qualquer outra coisa que não sejam os seus apropriados papéis de símbolos, e ignorando o seu verdadeiro significado, e dar-lhes a honra devida apenas àquilo que de fato eles significam trata-se, em linguagem bíblica, de cometer idolatria.

            Pois, ao assim proceder, nós materializamos mistérios espirituais, e conferimos à Forma a consideração devida apenas à Substância. Onde quer que compreendamos como coisas Sensoriais coisas que tão somente pertencem ao Espírito, encobrindo assim as verdadeiras feições da Divindade com representações falsas e espúrias, nós cometemos o que a Bíblia considera como o mais repugnante dos pecados, e nos tornamos idólatras e, ao mesmo tempo, nos identificamos com aquela escola materialista que está rapidamente se espalhando pelo mundo com o objetivo declarado de erradicar a própria idéia de Deus e de Alma.

            Isso porque “Idolatria é Materialismo, o pecado comum e original dos homens, o qual substitui o Espírito pela Aparência, a Substância pela Ilusão, e conduz tanto o Ser moral quanto o Ser intelectual ao erro, de modo que eles substituem o superior pelo inferior, e o elevado pelo superficial. É esse falso fruto que atrai os sentidos externos, a tentação da serpente no começo do mundo”; e isso tanto para a raça quanto para cada indivíduo onde e quando quer que tenha vivido, pois todos estão sujeitos à sua atração.

            Devemos então saber, para a reta compreensão das escrituras místicas, que em seu sentido esotérico, ou interior e real, elas não tratam de coisas materiais, mas de realidades espirituais; e que nem Adão é um homem real, porém antes denota a personalidade inferior ou força intelectual em todo ser humano; nem Eva uma mulher real, mas denota o elemento feminino em todo o ser humano, a saber, a Alma ou consciência moral; e ela é, portanto, chamada de a “Mãe dos que Vivem”, ou seja, dos que estão espiritualmente vivos – aqueles nos quais a Alma alcançou autoconsciência.

            Tampouco o Éden é um lugar real, mas uma condição de inocência anterior a uma queda de uma altura alcançada. Nem é a Árvore da Vida no meio do Éden uma árvore real, porém Deus estabelecido no meio do Universo como sua vida. Do mesmo modo que não é o homem feito de imediato à imagem e semelhança de Deus, mas somente após longas eras de desenvolvimento, começando nas formas inferiores da vida vegetal, e seguindo sua elevação através de muitas formas, até que ele alcança a forma humana; e mesmo então ele não é feito à imagem de Deus, não é verdadeiramente homem no sentido bíblico e místico. Pois nesse sentido faz-se necessário algo mais do que o homem físico, mais do que o homem intelectual, mais até mesmo do que o homem moral, para tornar-se um homem.

            Para ser feito à imagem e semelhança de Deus ele deve atingir sua maioridade espiritual, através do desenvolvimento da consciência de sua natureza espiritual. Ele deve ser alma tanto quanto corpo; Eva tanto quanto Adão; assim como no mundo físico, também no plano espiritual ele requer a mulher para lhe fazer um homem, e a mulher mística é a Alma. Antes do seu advento (da Alma), ele é o homem apenas materialístico e rudimentar, é homem apenas na forma, e é um animal em todos os outros aspectos.

            Mas ela vem finalmente, manifestada como tão somente a Alma pode fazer, quando seu ser inferior está envolto em profundo sono, e ele acorda para descobrir-se plenamente homem, à imagem de Deus, macho e fêmea, no sentido que ele representa os dois aspectos, masculino e feminino da Deidade, o poder divino e o amor divino, e também os Sete Espíritos através dos quais Deus cria todas as coisas. Assim constituído ele é de fato Homem, pois ele é uma manifestação de Deus, por cujo espírito, operando dentro dele, ele tem sido criado. E criado desse modo tem sido e será todo o homem que jamais viveu ou viverá”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo),  pp. 216-218]
 

 

            Ao tratarmos, ainda que brevemente, dos símbolos da Cruz, de Adão e Eva, da Terra Prometida, do Egito, da Virgem Maria entre outros, já deixamos clara a distância que existe entre o literalismo idólatra do materialismo dominante e os significados das interpretações místicas desses símbolos na Bíblia.

 

 

            “Adão”, “Eva”, “Cristo”, “Maria” e o Restante – Simbolizam os Vários Elementos Espirituais que Constituem o Indivíduo e Seus Estados.

            “O tópico de sua segunda palestra (…) foi a segunda cláusula do Credo: “E em Cristo Jesus, Seu único Filho, nosso Senhor; que é concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem Maria”.

            Com relação a essa cláusula, ela disse que ao insistir na significação esotérica como sendo a única verdadeira e de valor, estamos simplesmente revertendo ao costume antigo e original.

            É a aceitação do Credo em seu sentido exotérico [ou externo] e histórico que é realmente moderna. Pois todos os Mistérios Sagrados eram originalmente vistos como espirituais, e apenas quando eles passaram das mãos de iniciados devidamente instruídos para aquelas do ignorante e do vulgar é que eles se tornaram materializados e degradados ao nível em que atualmente se encontram.

            A verdade esotérica desse artigo do Credo pode ser entendida somente por meio de um conhecimento anterior, primeiro, da constituição do homem e, em seguida, do significado dos termos empregados na formulação da doutrina religiosa.

            Essa doutrina denota um conhecimento perfeito da natureza humana, e os termos pelos quais ela é expressa – “Adão”, “Eva”, “Cristo”, “Maria” e o restante – simbolizam os vários elementos espirituais que constituem o indivíduo, os estados pelos quais ele passa, e a meta que ele finalmente alcança no percurso de sua evolução espiritual.

            Pois, como São Paulo diz: “essas coisas são uma alegoria” [Gálatas, 4:24]; e para compreendê-las é necessário conhecer os fatos aos quais elas se referem. Conhecendo esses fatos, não temos nenhuma dificuldade de reconhecer a origem de tal representação e de aplicá-la a nós mesmos.

            Assim, “Adão” é o homem meramente externo e mundano, ainda que desenvolvendo no devido tempo a consciência de “Eva” ou a Alma – pois a alma é sempre a “Mulher” – tornando-se um ser dual constituído de matéria e espírito.

            Como “Eva”, a Alma cai sob o domínio desse “Adão”, e tornando-se impura através da sujeição à matéria, dá nascimento a Caim, que, representando a natureza inferior, é descrito como cultivando os frutos do chão.

            Mas, como “Maria”, a Alma readquire sua pureza e é descrita como sendo virgem, no que diz respeito à matéria e, se polarizando para Deus, torna-se mãe de Cristo ou o Homem Regenerado, o qual tão somente é o Filho Único de Deus e Salvador do homem no qual ele é gerado. Razão pela qual Cristo é tanto o processo como o resultado do processo. Assim sendo, ele não é “o Senhor”, mas “nosso Senhor”. O Senhor é Adonai, a Palavra, subsistindo eternamente no céu; e Cristo é sua contraparte no homem”. [The Life of Anna Kingsford (A Vida de Anna Kingsford), vol. II, pp. 197-198. NT: o grifo é nosso].
 

 

 

VIVIANE: Que instrumentos nós temos para tirar o que não é importante e deixar somente o que faz diferença, o que é de crucial relevância no Cristianismo e no Budismo? Como aproveitar o que há de melhor de ambos em proveito mútuo?

 

ARNALDO: Em primeiro lugar, com o simples fato de compreendermos o Budismo e o Cristianismo como uma única grande tradição, a qual nasceu para ser universal ou católica e que, portanto, respeita, valoriza e incorpora os ensinamentos de todos os outros grandes Avatares e tradições, somos levados naturalmente a questionar e romper com um dos aspectos centrais da idolatria do sacerdotalismo dominante em todas as tradições religiosas, incluindo os ensinamentos das tradições budista e cristã.

            O dogmatismo, a idolatria e o sectarismo são aspectos inerentes ao sacerdotalismo materialista que hoje é dominante em praticamente todas as grandes tradições religiosas. Ao questionarmos e rompermos com essas características perversas, já adquirimos uma espécie de metro que nos permite separar, em grande medida, o joio do trigo, o que é essencial e o que é acessório, em todas as tradições.

            Conforme já vimos em uma citação que não é demais repetir parcialmente: “uma das mais deploráveis características do Sacerdotalismo é sua habitual intolerância a todas as outras formas de fé e sistemas religiosos, a despeito de sua antiguidade, autenticidade, semelhanças fundamentais e credibilidade. O Sacerdotalismo não os vê como amigos, mas como rivais e inimigos; que não devem ser entendidos, apreciados e – ao menos em parte – assimilados, mas que devem ser ignorados, depreciados e contestados.” [Bertram McCrie, The Living Truth in Christianity (A Verdade Viva no Cristianismo), p. 26].

            Em segundo lugar, à luz dos ensinamentos e das interpretações trazidas pela Dra. Kingsford e Maitland, ou seja, pelo Evangelho da Interpretação, como, por exemplo, o ensinamento de que os símbolos necessariamente devem ser interpretados de forma espiritual ou mística, ou seja, devem ser interpretados buscando sua relação com nossas Almas e nossos Espíritos, fica relativamente mais fácil separarmos detalhadamente aquilo que é idolatria daquilo que é uma interpretação lúcida, espiritual. Com isso e com os demais critérios e exemplos de interpretação que nos são trazidos pelo Evangelho da Interpretação, podemos identificar as partes mais relevantes para a composição de um todo harmônico contidas nos ensinamentos do Buda Sidharta e do Cristo Jesus.

            Desse modo, em resumo, o ensinamento do Cristo Jesus vem complementar os ensinamentos do Buda Sidharta Gautama. Os ensinamentos do Cristianismo que mais se destacam dizem respeito às cinco Grandes Iniciações, que estão simbolizadas nos acontecimentos principais da vida do Cristo Jesus, conforme relatada nos Evangelhos.

            Os ensinamentos do Buda nos trazem a base ética e a compreensão das estruturas psicológicas do ser humano, das ilusões a que estamos submetidos, bem como das principais diretrizes para a libertação dessas ilusões, o que nos capacita para as etapas superiores do caminho evolutivo de nossas Almas.

            Os ensinamentos do Cristo Jesus complementam essa estrutura magnífica deixada pelo Buda Gautama com o ensinamento propriamente religioso, espiritual e iniciático – um ensinamento claro acerca do caminho das Grandes Iniciações, com a necessária gradual aproximação e, finalmente, inclusão nas fileiras da Igreja Celestial, da Comunhão dos Santos, ou da Hierarquia Sagrada que rege os desígnios maiores da evolução de nossa raça e de toda vida em nosso planeta.

            A vida de Jesus no Novo Testamento é repleta de símbolos que, quando interpretados corretamente, dão às pessoas a luz e a direção segura que elas precisam quanto às etapas mais avançadas da evolução de suas Almas, o que é finalidade precípua da verdadeira religião.

            Há muita discussão entre os próprios budistas se o Budismo é ou não uma religião. Tal discussão não ocorre na seara do Cristianismo. Esse simples fato evidencia o caráter mais interno, propriamente religioso, de uma como necessária complementação da outra.

            Unindo a base budista com o ensinamento cristão, a humanidade está bem alicerçada, podendo construir as principais instituições de sua civilização em cima de uma rocha. Para usar a expressão dos Evangelhos:

 

            “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática, será comparado a um homem prudente, que edificou a casa sobre a rocha.

            E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa; contudo não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.

            Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras, e não as põe em prática, será comparado a um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia.

            E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu; e grande foi a sua queda”. (Mateus, 7:24-27)

 

 

VIVIANE: Qual a base do Cristianismo Budista?

 

ARNALDO: Penso que seria melhor, mais seguro, responder essa questão fundamental escolhendo alguns textos da literatura original do Evangelho da Interpretação. A pergunta aponta para a necessária complementação entre os ensinamentos dos dois Mestres. Assim, mesmo correndo o risco de que a leitura se torne um tanto cansativa, parece mais adequado trazermos aqui a tônica dessa literatura original, ou seja, as palavras dos próprios profetas que resgataram essa tradição, a Dra. Anna Kingsford e Edward Maitland:

 

 

            A Redenção no Cristianismo e a Redenção do Cristianismo São Dependentes de Sistemas Anteriores, que São Seus Necessários Pioneiros e Precursores (Buda e Pitágoras, ou Seus Correspondentes Hebraicos, Moisés e Elias)

            “Do mesmo modo que não fazia parte do projeto dos Evangelhos representar o percurso inteiro do Homem Regenerado, também não fazia parte desse projeto fornecer, no que diz respeito à vida e doutrina religiosa, um sistema integral e completo, independentemente dos que o antecederam.

            Por ter uma relação especial com o Coração e o Espírito do Homem, e dessa forma com o núcleo da célula e com o Santo dos Santos do Tabernáculo, o Cristianismo, em sua concepção original, delegou a regeneração da Mente e do Corpo (...), ou o dualismo exterior do Microcosmo, a sistemas já existentes e amplamente conhecidos e praticados.

            Esses sistemas eram dois em número, ou melhor, eram como dois modos ou expressões do sistema uno, cujo estabelecimento constituiu a “Mensagem” que antecedeu o Cristianismo pelo período cíclico de seiscentos anos. Esse sistema era a Mensagem na qual os “Anjos” estiveram representados em Gautama Buda e Pitágoras.

            No caso desses dois profetas e redentores, praticamente contemporâneos, o sistema era, tanto na sua doutrina quanto na sua prática, essencialmente um e o mesmo. E suas relações com o sistema de Jesus, como seus necessários pioneiros e antecessores, encontram reconhecimento nos Evangelhos na alegoria da Transfiguração.

            Os personagens que aparecem nesse evento – Moisés e Elias – são correspondentes hebraicos de Buda e de Pitágoras. E eles são descritos como tendo sido vistos pelos três apóstolos nos quais são representadas, respectivamente, as funções distintamente exercidas por Pitágoras, por Buda e por Jesus; ou seja, Obras, Compreensão e Amor, ou Corpo, Mente e Coração.

            E pela sua reunião no Monte está representada a união dos três elementos – e a complementação de todo o sistema abrangido pelos três – em Jesus, como o representante do Coração ou daquilo que é Mais Interno, e, em um sentido especial, como o “amado Filho de Deus”.

            O Cristianismo, então, foi introduzido no mundo com uma relação especial com as grandes religiões do Oriente, e sob a mesma regência divina. E muito longe de ser concebido como um rival e suplantador do Budismo, ele era a direta e necessária continuação desse sistema. E os dois são apenas partes de um todo contínuo e harmonioso, no qual a parte que veio por último é somente o indispensável acréscimo e complemento da parte que veio anteriormente.

            Buda e Jesus são, portanto, necessários um ao outro. E no sistema integral assim completado Buda é a Mente e Jesus é o Coração; Buda é o geral, Jesus é o particular, Buda é o irmão do universo, Jesus é o irmão dos homens; Buda é a Filosofia, Jesus é a Religião; Buda é a Circunferência, Jesus é o Interno; Buda é o Sistema, Jesus é o ponto de Radiação; Buda é a Manifestação, Jesus é o Espírito; em síntese, Buda é o “Homem”, Jesus é a “Mulher”.

            Se não fosse por Buda, não poderia ter havido Jesus, nem teria ele sido suficiente para atender ao homem integral; pois o homem deve ter a Mente iluminada antes que as Afeições possam ser despertadas. Nem teria sido o Buda completo sem Jesus. Buda completou a regeneração da Mente; e por meio de sua doutrina e prática os homens são preparados para a graça que vem por meio de Jesus. Motivo pelo qual nenhum homem pode ser propriamente cristão, se não for também e primeiramente budista.

            Assim, as duas religiões constituem, respectivamente, o aspecto exterior e o aspecto interior do mesmo Evangelho, os alicerces estando no Budismo – incluindo nesse termo o Pitagorismo – e a iluminação estando no Cristianismo. E da mesma forma que sem o Cristianismo o Budismo está incompleto, assim também o Cristianismo sem o Budismo é ininteligível.

            O Homem Regenerado dos Evangelhos se sustenta sobre a base delineada por Buda, que constitui as primeiras etapas do mesmo processo de regeneração, de modo que sem elas o Homem Regenerado seria impossível. Daí o significado, já explicado, do papel de João Batista.

            Além disso, o termo Buda, significa a Palavra. E o Buda e o Cristo representam, embora em diferentes planos, o mesmo divino Logos ou Razão, e juntos são expressões da “Mensagem” que, em ciclos anteriores, foi pregada por “Zoroastro” – a Estrela Solar – bem como por Moisés, e exemplificada por Mitras, Osíris e Krishna.

            A doutrina de todos eles era uma só e exatamente a mesma, pois ela era a doutrina do Homem Regenerado, o mesmo “Evangelho de Cristo”. Essa doutrina era, dessa forma, o tesouro – mais valioso que todos os outros – que Israel [a alma], ao fugir, “despojou os egípcios” [o corpo] (Êxodo, 12:36). Doutrina que, a alma, ao escapar do domínio do corpo, mantém a posse, a tendo adquirido através de sua experiência no corpo.

            Que Buda, grande como foi sua “Renúncia”, não tenha passado por uma provação tão extrema como a atribuída à sua contraparte dos Evangelhos, se deve à diferença de papéis exercidos, e aos níveis alcançados por eles. O sofrimento não é da mente, mas do coração; e enquanto que, no sistema unificado de ambos, Buda representa o intelecto, Jesus representa as afeições. Em Jesus – como o modelo mais elevado da expressão do elemento amor – a Humanidade cumpre o preceito: “Meu filho, dá-me o teu coração”. [Provérbios, 23:26] (*)

            Uma vez que da união espiritual na fé una de Buda e Cristo nascerá a esperada redenção do mundo, as relações entre os dois povos através dos quais, no plano físico, essa união deve ser realizada, se torna um assunto de especial interesse e importância. Vista a partir desse aspecto, a conexão existente entre a Inglaterra e a Índia se eleva da esfera política para a esfera espiritual.

            Como povos característicos do Ocidente e do Oriente, pertencentes a raças claras e escuras, esses dois povos, como representativos do Homem e da Mulher da Humanidade, constituirão, no tempo devido, o Homem uno, regenerado e tendo poder, feito à imagem de Deus.

            E assim o “relâmpago que vem do Oriente”, após “iluminar o Ocidente”, [Mateus, 24:27] será refletido novamente, purificado e aprimorado, como “uma luz para iluminar todas as nações e para se tornar a glória do Israel espiritual”. Desse modo, então, em Cristo Jesus, os sistemas sagrados do passado encontram sua maturidade e aperfeiçoamento. Pois, por meio de Cristo torna-se possível a dádiva do Espírito Divino – o “Paráclito” [Espírito Santo] – que não poderia ter vindo por meio de Pitágoras nem por Buda, porque eles simbolizam os elementos externos do Microcosmo; e o Nucléolo, ou Espírito, só pode se manifestar no elemento interno, ou Núcleo, do qual Jesus é o símbolo.

            E assim, como está escrito em Gênesis 15:16, “na quarta geração”, a semente espiritual de Abraão, ou Brahma – pois eles são a mesma palavra e denotam exatamente a mesma doutrina – irá “retornar” à terra prometida que lhes pertence por herança; e, como dito por Jesus: “virão muitos do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abrãao, Isaac e Jacó, no reino dos céus”. (Mateus, 8:11).

            Pois, do mesmo modo que os “três, Noé, Daniel e Jó”, eram para os hebreus, modelos de Retidão, assim também os três, “Abraão, Isaac e Jacó”, eram modelos de Verdade, progenitores do Israel espiritual, e representantes dos vários mistérios sagrados de cujo “reino” o Homem Regenerado sempre é – e o mundo regenerado finalmente se tornará – por adoção e graça, herdeiro.

            Os mistérios especialmente simbolizados por “Abraão” são, como recém mencionamos, aqueles da Índia. Eles são os mistérios do Espírito, ou do mais Interno, e são sagrados para o Supremo Ser, Brahma, que representa a deidade no processo de auto-manifestação e, portanto, em atividade.

            Nesse processo, o Ser Original, Brahm se torna Brahma; Deus se torna o Senhor, o Manifestador. E é no reconhecimento dessa mudança, que Abram se torna Abraão. A história desse personagem, sua fuga – que é sempre um elemento invariável em tais histórias, como no exemplo das histórias de Baco, de Israel, da Família Sagrada, de Maomé entre outros. Suas aventuras e andanças tratam da história da migração dos mistérios da Índia, através da Caldéia, para aquele centro e pivô, divinamente escolhido, de todas as verdadeiras religiões: o Egito – um termo que representa o corpo, que é ele mesmo a morada, divinamente indicada, da alma durante seu período de provação. (**)

            A próxima grande ordem de mistérios se refere à alma, e é sagrada para Ísis, a deusa da intuição, e “Mãe” do Cristo. Esses mistérios foram, para os israelitas, representados por Isaac, um nome ocultamente conectado com o de Ísis e de Jesus, como também com um importante personagem na linhagem desse último, chamado de Jessé, o “pai de Davi”, e um “pastor de ovelhas”.

            A terceira e remanescente grande ordem de mistérios – aquela que se refere ao corpo, e que logo migrou para a Grécia – é sagrada para Baco, cujo nome místico, Iacchos, é idêntico a Jacó.

            Compreendendo as três grandes divisões da existência, e por implicação também a quarta divisão, essas três ordens de mistérios combinadas formaram, na concepção original do Cristianismo, um sistema de doutrina e vida a um só tempo completo, harmonioso e que atende todas as necessidades e aspirações da humanidade, tanto do mundo presente quanto do que está por vir.

            E foi nesse sentido que os termos foram atribuídos a Jesus, em sua resposta às perguntas feitas sobre ele, em relação à ressurreição dos mortos. Pois, deixando de lado a pergunta feita literalmente, e partindo logo para seu sentido místico, ele deu uma resposta que se referiu, ao menos primariamente, não aos próprios indivíduos que foram nomeados, mas aos sistemas aos quais seus nomes remetiam; e afirmando que sistemas estão tão cheios de vitalidade, e são tão essenciais à salvação, como quando foram inicialmente comunicados divinamente a Moisés nas palavras: “Eu sou o Deus de Abraão, e o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó”, ele adicionou que “Deus não é o Deus dos mortos, mas dos vivos.” (Mateus, 22:32). Motivo pelo qual, de acordo com isso e com a profecia correspondente citada acima, esses mistérios – que são ao mesmo tempo hindus, caldeus, persas, egípcios, hebraicos, gregos e cristãos – irão, restaurados em sua pureza original, constituir a doutrina predominante dos tempos que estão por vir.

            Nessa previsão do futuro agora iminente deve ser encontrada a chave para a política espiritual do mundo. Transferidos do plano místico para o mundano, os “reis do Oriente” são aqueles que detêm soberania política sobre as regiões do Hindustão. No “plano pessoal o título se refere àqueles que possuem o conhecimento “mágico”, ou as chaves do reino do Espírito – deter a posse de tais chaves é ser um Mago. Em ambos os sentidos o título daqui em diante pertence a nós.

            No que diz respeito à Bíblia – que é um dos principais depositários desse conhecimento mágico – nosso país (a Inglaterra, na segunda metade do século XIX) tem sido por longo tempo o guardião e defensor mais proeminente. Por três séculos e meio – um período que sugere a referência mística “tempo, dois tempos e meio tempo” (p. ex.: Daniel, 7:25 e 12:7), e também o “um ano de anos” (Gênesis, 5:21) do herói solar Enoque – a Inglaterra tem amorosa e fielmente, ainda que não inteligentemente, cultivado a Letra, a qual agora, por meio da descoberta da interpretação, é – como o seu modelo anterior – “traduzida” para o plano do Espírito.

            Possuindo assim a Gnosis, tanto na substância como na forma, nosso país estará apto à soberania mais elevada, uma vez que espiritual, à qual ela está destinada, e uma soberania que durará mais do que seu império material.

            Pois, descobrindo que eles são essencialmente um só, no que diz respeito à fé e à esperança, ainda que diferentes com relação às questões acessórias, o Oriente e o Ocidente se tornarão unos em coração e meta, e juntos gerarão, como um filho, a filosofia, a moralidade e a religião – em uma palavra, a Humanidade – do futuro.

            Tudo, portanto, que tende a unir a Inglaterra ao Oriente é de Cristo, e tudo que tende a separá-los é do Anti-cristo. Aqueles que buscam unir Buda a Jesus pertencem ao celestial e ao mais elevado; e aqueles que se interpõem para fazer objeção à sua união pertencem ao astral e ao inferior.

            Entre os dois hemisférios fica o domínio e a fé do Islã, não para dividir, mas como um cordão umbilical, para uni-los. E nada há no Islamismo para impedir a realização dessa função elevada, e impedi-la de partilhar das graças resultantes dela. Pois, não apenas por ela ser a única religião realmente monoteísta não idólatra hoje existente; mas sua Estrela simbólica e Lua Crescente são essencialmente o mesmo que a Cruz do Cristo que para eles também representam os elementos masculinos e femininos da existência divina, e a relação da alma com Deus. De modo que o Islamismo deve tão somente realizar essa outra etapa de sua evolução natural, que o permitirá reclamar um local igual na irmandade dos Eleitos. Esse é o reconhecimento prático em “Alá” da Mãe bem como do Pai, por meio da exaltação da mulher até seu devido lugar em todos os planos da múltipla natureza do homem. Uma vez tendo isso se realizado, Esaú e Ismael se reunirão com Abraão, Isaac e Jacó, em Cristo.

            Nesse reconhecimento da idéia divina da humanidade e seus resultados finais, consistirá o que é chamado do “Segundo Advento e reino milenar do Cristo”. Desse advento – ainda que descrito como se assemelhando à vinda de um ladrão na noite – sua aproximação não passará desapercebida.

            Pois mesmo na mais escura das noites espirituais, há sempre em estado de alerta alguém que, como dedicados pastores, mantém constante vigília sobre o rebanho de seus próprios seres queridos, e que, “vivendo a vida, conhecem a doutrina”. E esses, “habitando próximos da fonte da visão clara”, e “discernindo os sinais dos tempos”, já percebem os movimentos de preparação das hostes celestiais, e as faixas brilhantes do amanhecer dos tão esperados Dias Melhores.

NOTAS:

(*) Essa relação entre os dois sistemas, e a necessidade que um tem do outro, tem encontrado reconhecimento entre os próprios budistas. Um exemplo disso que pode ser citado, é o do chefe Cingalês que tinha enviado seu filho a uma escola cristã; e que, ao ter sua coerência contestada por um cristão, respondeu que as duas religiões eram uma para a outra como a canoa comum em seu país. Essa canoa usa um instrumento – chamado de auterrigue – por meio do qual, quando navegando, ela é mantida em equilíbrio. “Eu adiciono”, ele disse, “sua religião à minha própria, pois eu considero o Cristianismo como um auterrigue muito bom para o Budismo”. – Da obra Ceylon de Tennant.

(**) De acordo com o uso Hindu, que faz do masculino o princípio passivo, e do feminino o princípio ativo da existência, os mistérios são representados pelas esposas das pessoas divinas. Assim, de Brahma o princípio ativo é sua esposa Sarasvati, seguindo a qual a esposa de Abraão, que também é seu princípio ativo, é chamada de Sara, “a Senhora”, significando, do céu. A estória do longo cortejo e das duas esposas de Jacó é uma parábola da iniciação nos mistérios, menores e maiores. E o episódio em que Isaac encontra sua esposa em um poço – assim como aquele em que Moisés é encontrado em um rio pela filha do rei – indica a mulher, ou alma, como o agente da intuição e, por essa razão, da iniciação e da redenção. O “Haram” e “Ur” do qual Abram veio, indica o lugar da luz espiritual; e as linhagens significam primariamente, não pessoas, mas estados espirituais”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), pp. 250-257]

 

            Estágios do Típico Homem Regenerado Representados na História do Evangelho

            “Pois todo o tema principal do ensinamento de Cristo e a moral da vida de Cristo, por meio dos quais ele vindicou ao mesmo tempo a Lei e os Profetas, é que um homem não pode ser salvo por nenhum ato de outro, ou por qualquer processo que ocorra fora dele mesmo; que “ninguém pode por qualquer meio redimir seu irmão, nem pagar a Deus um resgate por ele (pagar o seu preço)” [Salmos, 49:8]; e que, portanto, nenhum tipo de oferenda queimada, ou de oferenda pelos pecados, nem qualquer sacrifício físico ou material seja lá qual for, pode salvar um homem de seus pecados e de suas conseqüências, mas tão somente um coração humilde e arrependido, e um espírito puro dentro do próprio homem, e uma vida de acordo com isso.

            Se apenas uma vez pudermos ler a Bíblia com a visão não obscurecida pelo véu de sangue, e não distorcida pelo preconceito, então todo o seu mistério – o mistério de nossa queda e de nossa redenção – torna-se claro como o céu sem nuvens. Pois, então, podemos identificar como algo que ocorre em nossas próprias almas todo o processo, desde o começo até o fim, que a Bíblia, do Gênesis até o Apocalipse, apresenta sob a forma de símbolos e parábolas, precisamente como fez Nosso Senhor ele mesmo.

            E, assim fazendo, nós chegamos a conhecer de forma absoluta, pela experiência individual de nossas próprias almas, que o segredo e o método do Cristo não é nenhum outro do que aquele processo interior de purificação e regeneração, tão somente por meio do qual o espírito no homem retorna a sua condição original de pureza, tornando-o um homem novo, uno com Deus, que é puro Espírito.

            É esse processo de transmutação, ou redenção do Espírito da Matéria, tanto na dimensão individual quanto na universal, que constitui o tema das Sagradas Escrituras, o objeto de todas as religiões verdadeiras, e a tarefa de todas as verdadeiras igrejas. E são os vários estágios desse processo que constituem respectivamente a Queda de Adão por meio da submissão da Eva dentro dele à serpente da Matéria; a descida de Israel, ou da Alma, até o Egito, ou o mundo e os sentidos; e o Êxodo ou fuga do mundo através da água da separação e consagração até o deserto, até a região erma da experiência beneficente; e a travessia do rio Jordão, ou rio da purificação, para tomar posse da terra prometida da perfeição.

            Novamente, são esses vários estágios desse processo que estão representados na história do Evangelho do típico homem regenerado. Sejam eles chamados de água e espírito, ou de alma pura e a divina operação que nela ocorre, ou da Virgem Maria e o Espírito Santo, é desses dois dentro de cada homem que finalmente é redimido, que o homem novo, ou o homem regenerado, o Cristo Jesus – que sempre é o “único Filho gerado por Deus” (“Filho único de Deus”) [João, 3:16, 18] – é produzido.

            E é sempre pela crucificação e morte na cruz da renúncia daquele velho Adão, o ser inferior, e a ressurreição e ascensão para uma condição de perfeição verdadeira que a salvação é finalmente alcançada. E a razão pela qual todas essas verdades eternas na história da alma foram centralmente colocadas na vida do profeta de Nazaré é simplesmente porque, reconhecendo nele os sinais ou testemunho de sua realização de perfeição num grau nunca antes alcançado, e em sua história as adequadas correspondências simbólicas, o Espírito Divino, sob cuja inspiração os Evangelhos foram compostos, o selecionou como o ícone das possibilidades da humanidade em geral.

            Porém, mesmo rejeitando dessa maneira como sendo idólatra, como uma blasfêmia, e como perniciosa no mais alto grau a doutrina, conforme ela é comumente conhecida, da Redenção ou Reconciliação Vicária [N.T.: Aquela realizada por alguém em lugar de outro; no caso o sacrifício de Jesus Cristo para nos redimir do pecado, para nos reconciliar com Deus], ainda vemos em Cristo Jesus o “único Filho gerado por Deus” (“Filho único de Deus”) [João, 3:16, 18]. E ainda nos apegamos a Seu sangue e a sua cruz como os únicos meios da salvação.

            Mas é o Cristo Jesus dentro de nós, ou o homem que renasceu de alma e espírito puros, como o próprio Jesus declarou que todos devem nascer – exatamente do mesmo modo como se descreve que Ele nasceu – a quem buscamos para nos salvar. E os meios são Sua cruz de auto-sacrifício, renúncia, e pureza de vida; e a recepção em nós mesmos daquele “Sangue de Deus” que não é nenhum sangue meramente físico – com o qual as imperfeições morais não possuem nenhuma relação – mas que é a vida de Deus, o próprio Espírito puro, o qual é Deus, e o qual Deus está sempre derramando em abundância para o bem de Suas criaturas, dando a elas de sua própria vida e substância.

            Quão perniciosa é a doutrina da redenção (ou reconciliação) vicária, conforme ela é comumente aceita, é algo que pode ser visto pelas atuais condições do mundo: intelectualmente, moralmente e espiritualmente, não menos do que fisicamente. O homem sempre se constrói segundo a imagem de seu Deus, isto é, segundo a sua idéia de Deus. E acreditando em um Deus que é injusto, egoísta e cruel, o homem não pode ser senão injusto, egoísta e cruel.

            É precisamente essa má representação do caráter divino, e essa perversão da verdadeira e da única possível doutrina da reconciliação ou redenção, em uma doutrina que faz a salvação do homem um processo externo a si mesmo, e dependente da ação de outro que não ele mesmo, que, por meio da falsificação do Cristianismo, provocou o seu fracasso. E, ao invés de um mundo ordenado por princípios de justiça, simpatia e pureza, nos legou um mundo de más ações, de egoísmo e de sensualismo”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo), capítulo O Vegetarianismo e a Bíblia, pp. 221-223]

 

            Apelo aos que Atingiram Maioridade Intelectual e Espiritual

            “Uma visão de religião como essa, no entanto, é obviamente incompreensível, a não ser para as pessoas cultas e desenvolvidas: seus termos, do mesmo modo que suas idéias, estão além da capacidade das pessoas em geral.

            O presente livro, portanto, e o trabalho que ele inaugura, estão direcionados para as pessoas de cultura e pensamento, as quais, reconhecendo os defeitos da crença popular, abandonaram, como sendo algo impossível, a tentativa de sistematizar essa visão e de relacioná-la com as suas necessidades mentais.

            Nunca poderá existir uma apresentação de religião igualmente adequada a todas as classes e castas de homens; e a tentativa da Igreja de realizar essa impossibilidade tem, necessariamente, resultado na alienação daqueles que são incapazes de aceitar o alimento cru e grosseiro oferecido à multidão.

            Desse modo, a Igreja desempenha o papel de um Procrustes com relação às coisas espirituais [N.T.: Na mitologia era um ser malévolo que espichava ou amputava os membros dos viajantes para conformá-los ao tamanho de sua cama]. A Igreja tem tentado encaixar em um único padrão mentes de todos os tipos e dimensões, em total desrespeito à máxima apostólica: – “É de sabedoria que falamos entre os plenamente adultos (...). Mas não vos pude falar como a homens espirituais, mas tão somente como a homens carnais, como a crianças (bebês) em Cristo. Dei-vos de beber leite, não alimentos sólidos, pois não o podíeis suportar.” [N.T.: 2 Coríntios, 2:6 e 3:1-2].

            Então, para esses – os incultos e não desenvolvidos – a Igreja deve continuar a falar com a face velada, em parábolas e símbolos. Nosso apelo é para aqueles que, tendo atingido sua maioridade intelectual e espiritual, abandonaram as coisas infantis, e que, portanto – ao invés de se contentarem com a casca superficial da letra, e ignorarem o espírito em troca da forma, ou o limitarem pela forma – são impelidos pela própria necessidade de suas naturezas a buscar o que está por detrás do véu, e a ler os significados espirituais através da forma, a fim de que “com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem” [2 Coríntios, 3:18].

            Os que estão assim maduros irão aprender nessas páginas o que é a Realidade que apenas a Mente pode apreender; e compreenderão que ela não pertence ao plano objetivo e fenomênico da história mundana, mas ao plano subjetivo e noumênico de suas próprias almas, onde ao procurar eles verão representado o processo de Queda, Exílio, Encarnação, Redenção, Ressurreição, Ascensão, a vinda do Espírito Santo, e – como conseqüência – a realização do Nirvana, a “paz que ultrapassa todo entendimento”. [Filipenses, 4:7]

            Para aqueles assim iniciados a mente não mais está preocupada com a história; o fenomênico passa a ser reconhecido como o ilusório – uma sombra projetada pelo Real, a qual não possui substância em si mesma, e é apenas um acidente do Real. Uma coisa é e perdura – a Alma no homem – Mãe de Deus, imaculada; descendo – como Eva – para a matéria e a criação; elevada – como Maria – para além da matéria até a vida eterna.

            Um estado, supremo e perfeito, representa e resume todos os demais – o estado de Cristo, prometido na aurora da evolução; revelado no seu processo; e glorificado na sua consumação. Realizar a assunção de Maria, alcançar a estatura de seu Filho – essas são as metas e aspirações que constituem o desejo do iluminado. E foi com o intuito de indicá-las novamente, bem como o método para buscá-las inteligentemente, que esse livro foi escrito”. [Prefácio dos autores para a segunda edição da obra The Perfect Way (O Caminho Perfeito), pp. lxxvi-lxxvii.]

 

            Converter a Interpretação Material e Idólatra da Doutrina Ancestral em uma Interpretação Espiritual

            “O Cristianismo ortodoxo, tanto nos países católicos como protestantes, está debilitado em razão de um defeito radical em seu método – a saber, o sentido exotérico [externo] e histórico no qual, exclusivamente, seus dogmas são ensinados e impingidos.

            Deveria ser a tarefa (…) nesses países, converter a interpretação material – e, portanto, idólatra – da fé e doutrina ancestral em uma interpretação espiritual; para erguer o patamar da fé cristã do nível exotérico [externo] para o nível esotérico [interno], e assim, sem mover uma pedra ou deslocar uma viga da cidade sagrada, erguê-lo como um todo intacto da terra para o céu.

            Uma tal transmutação, um tal translado como esse, iria de uma vez por todas silenciar as objeções e acusações hoje levantadas pelos pensadores, acadêmicos e cientistas, de forma legítima e razoável, contra o ensinamento eclesiástico. Pois ela elevaria a Religião para sua única esfera apropriada; ela libertaria os objetivos e interesses da Alma da escravidão da Letra e da Forma, da Historicidade e das Críticas, e assim da conturbada e sempre ineficaz tentativa de acompanhar o fluxo e refluxo da especulação material e das descobertas científicas.

            A tarefa assim proposta não é de maneira alguma difícil. É necessário apenas ser demonstrado, primeiramente, que os dogmas e símbolos centrais do Cristianismo são idênticos àqueles de todos os demais sistemas religiosos do passado e da atualidade – uma demonstração que já está em grande medida no mundo. E, além disso, que aqueles dogmas, que são manifestadamente falsos e insustentáveis em um sentido material, e cujos símbolos são claramente não históricos, devem ter seu plano verdadeiro buscado não aonde até o momento a Igreja tem se esforçado em buscá-los – no sepulcro da tradição, entre os ossos ressecados do Passado. Mas, ao invés disso, sua compreensão deve ser buscada no Céu vivo e imutável para onde nós, que verdadeiramente desejamos encontrar o ‘Senhor’, devemos nos elevar em coração e mente.

            ‘Por que procurais Aquele que vive entre os mortos?

            Ele não está aqui, Ele está ressuscitado [elevado]’. [Lucas, 24:5-6]

            Por fim, deveria ser demonstrado que esses eventos e personagens, até o momento erroneamente interpretados como puramente históricos, representam com precisão os processos e princípios envolvidos no desenvolvimento interior, e respondem perfeitamente às necessidades específicas e eternas do Ego humano.

            E que assim o Iniciado não tem qualquer contenda com a verdadeira religião cristã ou com seu simbolismo, mas apenas com a interpretação ortodoxa atual daquela religião e simbolismo.

            Pois ele sabe que é no mundo noumênico e não no mundo fenomênico, no plano espiritual e não no plano material, que ele deve buscar o entendimento de todo o processo da Queda, do Exílio, da Imaculada Conceição, da Encarnação, da Paixão, da Crucificação, da Ressurreição, da Ascensão e da Vinda do Espírito Santo.

            E qualquer forma de interpretação que tenha um significado diferente desse, não é celestial, mas terrena, e se deve à intrusão de elementos terrenos nas coisas divinas, à conversão do que é interno em algo externo, à materialização do Espiritual – o que constitui a idolatria.

            Pois, aqueles dentre nós que conhecem e vivem a vida interna são salvos, não por nenhuma Cruz no Calvário há mil e oitocentos anos passados, não por qualquer derramamento de sangue físico, não por qualquer paixão vicária de lágrimas, de acoite e de lança; mas pelo Cristo Jesus, o Deus conosco, o Emanuel do coração, nascido, realizando grandes obras e oferecendo sacrifício em nossas próprias vidas, em nossas próprias pessoas, redimindo-nos do mundo e nos tornando filhos de Deus e herdeiros da vida eterna”. [The Life of Anna Kingsford (A Vida de Anna Kingsford), vol. II, pp. 142-143]

 

 

            Assim, até onde possa ver, a base do Cristianismo Budista está no conhecimento de que as Escrituras Sagradas do mundo – não apenas a Bíblia e os ensinamentos canônicos do Budismo, mas inclusive esses – foram escritos, em suas partes principais, como alegorias, como parábolas, como símbolos que devem ser interpretados, e que não devem ser lidos literalmente.

            Há duas passagens da Bíblia que sempre me ocorrem ao falar desse ponto fundamental. A primeira é a passagem em que Jesus afirma categoricamente que, para o público em geral (ou seja, exceto para os mais próximos Dele), Ele não falava NADA que não fosse de forma alegórica, em parábolas.

 

            “Todas estas coisas falou Jesus às multidões por parábolas, e sem parábolas nada lhes falava”. (Mateus, 13:34)

 

            A segunda é do Apóstolo Paulo, que é bem conhecida, mas não bem entendida na sua vasta importância e significado.

 

            “A letra mata, mas o espírito vivifica”. (2 Coríntios, 3:6)

 

            Por essa razão é que o nome da mensagem que, em nossa época, revela ao público muito da interpretação, do significado desses símbolos e parábolas, é justamente o Evangelho da Interpretação.

            Então, voltando à pergunta, a base do Cristianismo Budista é uma correta interpretação desses símbolos, dessas alegorias e parábolas presentes nas Escrituras Sagradas do Budismo e do Cristianismo, sem necessariamente a exclusão da interpretação espiritual das demais Bíblias do mundo, naquilo em que elas possam complementar os textos tradicionais do Budismo e do Cristianismo.

            A missão da Dra. Kingsford e de Mailtland, segundo eles mesmos, estava mais voltada à interpretação dos símbolos e alegorias ligadas às tradições ocidentais. Enquanto que as missões de outros profetas estariam mais ligadas à interpretação dos símbolos, das alegorias, ou das Bíblias do Oriente. Penso que aqui podemos citar, com segurança, profetas como Madame Helena Blavatsky e como Sri Ramakrishna, bem como os principais colaboradores e continuadores de suas obras, tais como William Judge, Dra. Annie Besant, Charles Leadbeater, Alice Bailey e Geoffrey Hodson, no caso da Madame Blavatsky, ou de Sri Vivekananda, no caso de Sri Ramakrishna. Isso não exclui outros profetas e autores. Essa lista visa apenas dar uma idéia geral do nível e da qualidade dos profetas e continuadores a que estamos nos referindo.

 

 

VIVIANE: Como Budismo e Cristianismo se complementam?

 

ARNALDO: Essa é uma pergunta daquelas que para responder razoavelmente, toda uma obra seria necessária. Mas estamos aqui para isso mesmo.  Então, vamos buscar uma passagem da obra A Verdade Viva no Cristianismo. Esse livro tenta resumir a mensagem da Dra. Kingsford e de Maitland. Embora muito sintética, é uma boa obra. Então, vamos ler alguns parágrafos, que tratam justamente dessa relação da complementaridade do Budismo e do Cristianismo.

            Para dar apenas uma idéia bem geral, costumo dizer que o Budismo se constitui dos alicerces e das paredes de uma grande casa filosófico-religiosa, tão grande que poderia abrigar, em harmonia, toda a humanidade. E o Cristianismo se constitui no telhado e nos acabamentos dessa grande casa, desse grande abrigo seguro para os nossos desafios, problemas e dores, e isso tanto em termos individuais quanto macro-sociais.

            Vamos examinar a referida passagem da obra de Bertram McCrie, A Verdade Viva no Cristianismo:

 

            “Exatamente essa atitude em relação àquele sistema religioso em particular denominado de Budismo, que precedeu o advento do Cristianismo por cerca de cinco ou seis séculos, tem sido algo próximo de uma atitude suicida ao real sucesso do Cristianismo, tendo se provado desastrosa para sua capacidade de influenciar a todos, exceto aos ignorantes e elementares, aos preconceituosos e às classes conservadoras ainda dominadas pelo Sacerdotalismo.

            Pois o fato é que a doutrina de Buda, com suas Quatro Nobres Verdades e seu Nobre Óctuplo Caminho, sua ilimitada compaixão em relação a toda a vida senciente, seu lógico ensinamento ético de desenvolvimento através da conquista de si mesmo e da autocultura, sua simples e não obstante profunda análise do sofrimento e da tristeza, com o método da libertação desses estando disponível a todos, sua regeneração completa da mente, seus elevados código de moralidade e padrão de tolerância, paz e caridade – essa doutrina é a indispensável precursora e intérprete da doutrina de Cristo. Em resumo, não são dois Evangelhos, mas dois aspectos, o externo e o interno, de um mesmo Evangelho. Pois o Budismo encontra sua tradução e complementação no Cristianismo, e o Cristianismo encontra sua concepção e seu alicerce no Budismo.

                        “A Luz do Mundo”

            Visto dessa forma, o Cristianismo, como religião, assume a obra de aperfeiçoar o homem em seu coração, a partir daquele grau de regeneração parcial a que o Budismo, como filosofia, já o conduziu em sua mente; e assim o Cristianismo descreve e trata apenas dos estágios finais de todo o grande trabalho.

            Se isso fosse reconhecido, as sérias deficiências referentes às bases, e aquelas falhas racionais, intelectuais e morais que confrontam os estudantes ponderados e imparciais do sistema cristão, seriam amplamente reconhecidas, e um passo adiante seria dado em direção à reabilitação, enquanto um todo vivo, da tão mutilada fé.

            Quão pouco conhecem o Cristianismo aqueles que conhecem somente um Jesus histórico, e deixam de levar em conta o caminho de Buda, como uma escada que deve ser subida para que se alcance o estado de Jesus!”. (pp. 25-27)

 

            Particularmente, penso que essa passagem é excessivamente simplificada. A realidade pode não ser assim tão “parede com telhado”, para criticar a minha própria expressão. Pois esse grande rio que é o Cristianismo Budista possui profundezas e Mistérios que estão muito além da nossa singela compreensão imediata.

            Porém, tal como nossa quase rude alegoria, essa passagem tem o grande mérito de nos dar uma idéia geral, uma idéia muito clara e muito abrangente. Uma idéia que permite que outros, mais sábios do que nós, possam continuar esse trabalho de levar ao mundo sedento as águas puras, as águas que saciam, as águas benditas desse grande manancial.

 

 

VIVIANE: Muitas pessoas consideram essa postura contraditória; elas pensam: ou se segue Buda ou se segue Cristo. Para elas, quem é budista não pode ser cristão, pois eles são Avatares que tiveram caminhos diferentes. Como solucionar essa aparente contradição e responder a essa questão?

 

ARNALDO: Respondo essa pergunta, inicialmente, com uma citação de Mme. Blavatsky, da obra A Chave para a Teosofia. No texto ela diz que a sociedade que ela fundou estava, na época, sendo atacada como budista e anticristã (porque a Mme. Blavatsky havia se convertido ao Budismo). Contra essas acusações, a Sra. Blavatsky argumentou que não poderia ser essas duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, ser ao mesmo tempo budista e anticristã, pois:

 

            “(...) tanto o Budismo quanto o Cristianismo, como apresentados por seus inspirados fundadores, fazem da fraternidade a essência da doutrina e da vida”. (p. 29)

 

            Com essa afirmação a Sra. Blavatsky nos mostra que Budismo e Cristianismo têm a mesma essência. Não é possível ser budista e anticristão, nem cristão e antibudista. Isso se percebe na base de seus ensinamentos, mesmo sem chegar à visão, muito superior, que nos diz que essas filosofias foram criadas pelos seus inspirados fundadores para serem complementares desde o início.

            Aqui caberia ainda trazer, embora já citada anteriormente, uma passagem dos próprios profetas Dra. Kingsford e Maitland:

 

            “O Cristianismo foi introduzido no mundo com uma relação especial com as grandes religiões do Oriente, e sob a mesma regência divina. E muito longe de ser concebido como um rival e suplantador do Budismo, ele era a direta e necessária continuação desse sistema. E os dois são apenas partes de um todo contínuo e harmonioso, no qual a parte que veio por último é somente o indispensável acréscimo e complemento da parte que veio anteriormente. (...)

            Se não fosse por Buda, não poderia ter havido Jesus, nem teria ele sido suficiente para atender ao homem integral; pois o homem deve ter a Mente iluminada antes que as Afeições possam ser despertadas. Nem teria sido o Buda completo sem Jesus. Buda completou a regeneração da Mente; e por meio de sua doutrina e prática os homens são preparados para a graça que vem por meio de Jesus. Motivo pelo qual nenhum homem pode ser propriamente cristão, se não for também e primeiramente budista”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), pp. 250-251]

 

 

VIVIANE: A impressão que fica é que essa idéia de contradição – de seguir Buda ou Cristo – surge um pouco da idolatria. As pessoas entendem que se colocar a imagem de Buda não pode colocar a imagem do Cristo ao lado, porque ou se venera um ou outro. Você acha que pode ser essa a origem da impressão de contradição?

 

ARNALDO: Primeiro, acho que não há problema em orar diante de imagens; não há qualquer contradição em ter imagem do Buda e do Cristo. Assim, não posso atribuir a isso o problema da contradição – ou da aparente contradição – existente entre as duas tradições.

            O problema, como você sugeriu, está mesmo na idolatria, inclusive na idolatria em relação à figura central da religião, do Avatar, do ser divino principal de uma dada tradição religiosa, o qual costuma ser considerado o maior de todos, como se os outros fossem de segunda ou terceira categoria. Com essa postura a pessoa se apega demais à forma, dá uma importância exagerada àquela forma histórica, que apareceu no longo devir do processo histórico, em um determinado momento, em uma determinada civilização, que teve um determinado tipo de corpo, falou determinada língua, pregou para determinado povo de determinada época. Assim, atribui-se àquela manifestação individualizada um peso totalmente distorcido, que ela não tem nem nunca deveria ter tido.

            Usando esse posicionamento idólatra muitos atribuem, por exemplo, à manifestação do Buda uma condição excepcional, determinando que antes não havia nada de igual valor e depois não houve mais nada que se comparasse. Também muitos fazem isso com a manifestação do Cristo Jesus, dizendo que, antes ou depois, não há nada que se compare a Ele.

            Esse é um pequeno exemplo de idolatria bastante comum em muitas religiões. Todas têm o seu Avatar que consideram como o melhor e maior e classificam os outros como segunda ou terceira categoria, se tanto.

            Esse é um exemplo da perversão maléfica, que tem terríveis consequências no mundo, fazendo com que as coisas que nasceram para ser complementares não sejam percebidas como tal. A mesma materialização e idolatria são feitas, como já dissemos, com relação aos principais símbolos e parábolas das tradições religiosas. O ensinamento alegórico é materializado, deturpado por uma leitura literal e historicista. E como disse o Apóstolo, “a letra mata”.

            Realmente, é justamente a idolatria, o equívoco, a má interpretação e a influência do materialismo que faz com que coisas que são complementares se tornem antagônicas, mesmo quando elas têm a mesma fundamentação, como no Budismo e no Cristianismo, que têm por base o princípio da fraternidade universal.

 

 

VIVIANE: O que é a fraternidade universal?

 

ARNALDO: Fraternidade, a palavra já esta dizendo, vem do Latim, irmão, e significa, portanto, irmandade. É o principio doutrinário que afirma que todos nós temos a mesma origem, a mesma essência, a mesma fonte, a mesma paternidade; portanto, todos nós somos irmãos. Todas as grandes religiões dizem isso e não poderiam dizer outra coisa, ou não seriam verdadeiras e grandes religiões – religião significando um caminho de ligação da humanidade com a verdade transcendente, a verdade divina e eterna, que sempre existe, sempre existiu e sempre vai existir no coração do universo.

            Se religião é isso, essa ligação com essa fonte eterna que é puro amor, pura luz, que é gloria, como uma poderá falar uma coisa diferente de outra? Não pode. Como o Budismo vai falar uma coisa essencialmente diferente do Cristianismo? Não pode. Eles podem usar símbolos diferentes, linguagens diferentes para se referir à mesma verdade eterna.

            Fraternidade é, em um simples resumo, o princípio no qual estão representados os seres humanos, toda a família humana, como sendo irmãos. É um princípio que descreve com veracidade a realidade da família humana. Todos nós temos a mesma essência, a mesma paternidade-maternidade divina e, portanto, somos todos irmãos.

            Esse princípio, que é decisivo para nós, não só afirma uma mesma origem, mas também afirma, de uma forma muito bela, que nós, como irmãos de uma família, temos idades diferentes, temos capacidades diferentes.

            Isso porque, no mundo da manifestação, a unidade se manifesta de uma forma plural, sob uma infinita diversidade – isso tanto nas suas dimensões, nos seus tamanhos, desde uma partícula subatômica até constelações, galáxias inteiras, ou mesmo grupamentos inteiros de galáxias que são para nós realidades gigantescas, difíceis até de imaginar. Mas essa imensa diversidade tem uma raiz una, um mesmo coração, uma mesma essência, que é a Luz e o Amor e, se nós quisermos usar a expressão, que é Deus.

            A fraternidade é isso. Ela é crucial porque é uma representação bastante acurada e verdadeira da família humana, e sempre que agredimos esse princípio da fraternidade universal da humanidade, como acontece em nossa época em seus sistemas de idéias principais, prejudicamos a humanidade como um todo. Em nossa época temos princípios dominantes que são negações do princípio da fraternidade universal; por isso temos instituições problemáticas que não têm a capacidade de criar uma ordem social harmônica, justa, minimamente decente.

            Isso, nunca parece demais repetir e enfatizar, é algo da maior importância para o bem estar humano, tanto individual quanto coletivamente considerado.

 

 

VIVIANE: Quais os aspectos básicos da fraternidade universal?

 

ARNALDO: Esses aspectos fundamentais podem ser sintetizados como a unidade se manifestando numa imensa diversidade ou, de forma resumida: unidade na diversidade.

            Assim, todos somos filhos de Deus, de uma mesma unidade, de uma mesma fonte, ou, em sentido alegórico, simbólico, de um mesmo pai-mãe. Porém, estamos nesse mundo em momentos diferentes, circunstâncias diferentes e, como temos idades de alma diferentes, temos capacidades e níveis de maturidade diferentes. Temos, então, o aspecto da unidade e temos o aspecto da diversidade – diversidade que pode ser vista tanto no “sentido horizontal”, quanto no “sentido vertical”.

            O que quero dizer com “sentido horizontal”? Mesmo se nós tivermos o mesmo nível de maturidade de outros irmãos, nós ainda temos temperamentos diferentes: um é mais artístico, outro mais científico, outro mais empreendedor. É o que algumas religiões nos falam dos tipos básicos, dos raios, dos diferentes temperamentos humanos. Então, temos diferentes temperamentos humanos, que são as diversidades “horizontais”, como as sete cores do arco-íris: nenhuma é mais importante que a outra.

            E dentro de cada uma dessas cores há diferentes níveis de luminosidade, de brilho, de pureza, que seria a diversidade “vertical”. Se transportarmos essa alegoria para a humanidade, teremos diferentes temperamentos e também diferentes níveis de maturidade psico-espiritual, de maturidade de Alma, o que se reflete e baliza a realidade do mundo material. Então, temos indivíduos operando com diferentes temperamentos e, dentro de cada uma dessas “cores” ou temperamentos, com níveis diferenciados de capacidades.

            Essa noção, essa visão de humanidade,nunca é demais enfatizar, é de tremenda importância, porque as idéias dominantes de nossa época negam, são contrárias a essa visão de unidade na diversidade.

            O dogma principal de nossa época é o igualitarismo. E as duas constelações de idéias dominantes, que são o Liberalismo e o Marxismo, estão baseadas em princípios falsos, que são princípios igualitaristas. Por diferentes caminhos eles pregam o igualitarismo, sem levar em conta que forçar uma igualdade entre seres que possuem diferentes capacidades, porque possuem diferentes idades de Alma, é algo que só produz conflitos e injustiça, e que impossibilita uma ordem macro-social razoavelmente justa e harmônica.

 

 

VIVIANE: Você diz que o Budismo joga luz nos símbolos cristãos. Como faz isso?

 

ARNALDO: O Budismo nos oferece, através da sua lógica simplicidade doutrinária, uma base filosófica que nos capacita resgatar a interpretação correta dos símbolos que foram idolatrizados, inclusive no Cristianismo. Ele nos auxilia a interpretar corretamente, porque sem interpretação os ensinamentos cristãos afundam.

 

 

            “E da mesma forma que sem o Cristianismo o Budismo está incompleto, assim também o Cristianismo sem o Budismo é ininteligível”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), p.251]
 

 

            As doutrinas fundamentais das Reencarnações e da Justiça Divina (ou Carma) são exemplos centrais dessa necessária complementação entre as duas tradições. Sem uma visão lógica e correta dessas doutrinas, o Cristianismo realmente fica ininteligível, porque ficamos incapacitados de interpretar corretamente seus principais símbolos e parábolas. E isso é válido desde o Gênesis até o Apocalipse, passando pelos Profetas, pela vida e pelos ensinamentos de Jesus relatados nos Evangelhos, e também é válido para as Cartas dos Apóstolos.

            Com essa luz trazida pelo Budismo, podemos interpretar os Evangelhos com os principais eventos da vida de Jesus representando as Grandes Iniciações. Podemos percebemos que cada Iniciação é o florescer de uma etapa anterior; cada Iniciação é a frutificação de uma etapa que foi semeada e amadurecida antes, na grande trajetória da evolução espiritual das Almas humanas.

            Apenas para dar um exemplo, a Parábola do Filho Pródigo representa a grande jornada de nossas Almas, desde a saída da casa do Pai até o máximo de imersão na matéria e, depois, a grande fase de retorno – ou evolução – de nossas Almas até a volta gloriosa à casa do Pai.

 

 

            “Certo homem tinha dois filhos.

            O mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me toca. Repartiu-lhes, pois, os seus haveres.

            Poucos dias depois, o filho mais moço ajuntando tudo, partiu para um país distante, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente.

            E, havendo ele dissipado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a passar necessidades.

            Então foi encontrar-se a um dos cidadãos daquele país, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos.

            E desejava encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam; e ninguém lhe dava nada.

            Caindo, porém, em si, disse: Quantos empregados de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados.

            Levantou-se, pois, e foi para seu pai. Estando ele ainda longe, seu pai o viu, encheu-se de compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.

Disse-lhe o filho: Pai, pequei conta o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho.

            Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e alparcas nos pés; trazei também o bezerro, cevado e matai-o; comamos, e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a regozijar-se.

            Ora, o seu filho mais velho estava no campo; e quando voltava, ao aproximar-se de casa, ouviu a música e as danças; e chegando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo.

            Respondeu-lhe este: Chegou teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo.

            Mas ele se indignou e não queria entrar. Saiu então o pai e instava com ele.

            Ele, porém, respondeu ao pai: Eis que há tantos anos te sirvo, e nunca transgredi um mandamento teu; contudo nunca me deste um cabrito para eu me regozijar com os meus amigos; vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado.

            Replicou-lhe o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu; era justo, porém, regozijarmo-nos e alegramo-nos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado”. (Lucas, 15:11-32)
 

 

            Sem o fundamento prévio das múltiplas Reencarnações e da Lei da Justiça Divina, ou Carma, todos esses eventos e parábolas que estão nos Evangelhos ficam, de fato, ininteligíveis.

 

 

VIVIANE: Quando falamos sobre Cristianismo, você destacou a compreensão das Iniciações como ponto fundamental para entender essa religião e também citou as Iniciações como ensinamentos superiores. Quais são as cinco Grandes Iniciações e o que elas representam?

 

ARNALDO: As cinco Grandes Iniciações são partes essenciais do Cristianismo Budista. Elas também estão presentes e representadas, alegoricamente ou não, em outras grandes tradições religiosas, como no Hinduísmo. Porém, esses ensinamentos, quando entendidos razoavelmente, deveriam ser ensinamentos muito marcantes da complementação trazida pelo Cristo Jesus à tradição que estamos denominando de Cristianismo Budista.

            Essa deveria ser uma característica bastante especial desse ensinamento, uma vez que aparece de forma tão destacada nos Evangelhos, no Novo Testamento, como os eventos mais importantes da vida de Jesus, conforme o relato dos evangelistas que foram, mal ou bem, selecionados para compor a Bíblia: o Nascimento, o Batismo, a Transfiguração no Alto do Monte, a Crucificação e a Ressurreição.

 

 

            “O Cristo nos dá um quadro definido de todo o processo na própria história de Sua vida, construída sobre as iniciações maiores que constituem nossa herança universal e a gloriosa (e para muitos) oportunidade imediata. Estas iniciações são:

            O Nascimento em Belém, para o qual Cristo chamou Nicodemos, dizendo: “o que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus”. (João, 3:3)

            O Batismo no Jordão. Este é o batismo a que se referia João, o Batista, acrescentando que o Batismo do Espírito Santo e do fogo dever-nos-ia ser administrado pelo Cristo. (Mateus, 5:48)

            A Transfiguração. Ali, pela primeira vez, a perfeição é demonstrada e a divina possibilidade de sua realização é comunicada aos discípulos. Surge o mandamento: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”. (Mateus, 5:48)

            A Crucificação. No Oriente, é designada como a Grande Renúncia, com sua lição do sacrifício e seu chamamento à morte da natureza inferior. Esta era a lição que S. Paulo conhecia e o objetivo pelo qual lutava. “Cada dia morro”, dizia, porque só na prática de sobrepor-se à morte de cada dia, pode-se enfrentar e resistir à Morte final. (I Coríntios, 15:31)

            A Ressurreição e Ascensão, o triunfo final, que capacita o iniciado a enunciar e saber o significado das palavras: “Onde está, ó morte, teu aguilhão? Onde está, ó sepulcro, tua vitória?”. (I Coríntios, 15:55)

            Tais são os cinco grandes e dramáticos acontecimentos dos mistérios. Tais são as iniciações, pelas quais todos os homens deverão passar, algum dia”. (De Belém ao Calvário, p. 33)
 

 

            Vamos tentar dar uma visão geral, talvez excessivamente sintética, dessas Grandes Iniciações, conforme aparecem simbolizadas nos Evangelhos.

            Nascimento de Jesus

 

            O Nascimento de Jesus simboliza a primeira das Grandes Iniciações. Esse acontecimento, conforme descrito nos Evangelhos, está repleto de simbolismos, como de resto toda a Bíblia. Talvez os principais desses símbolos nesse acontecimento sejam o fato do Nascimento se dar entre os animais, a presença da Estrela e dos três Reis Magos, a simplicidade e a sobriedade do ambiente, assim como a compaixão e a docilidade de Maria, a Mãe do Menino Jesus.

            O Nascimento simboliza uma vida nova que está surgindo, uma nova etapa, onde um determinado tipo de consciência não estava presente e a partir desse momento passa a estar presente, pelo menos de forma marcante e inequívoca.

            Existe na Bíblia a frase: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João, 14:6) e as pessoas que não conseguem ver além do literal pensam que só Jesus é “o caminho e a vida”. Aquele que pensar apenas no Jesus histórico e não interpretar aquilo que significa o símbolo de Jesus, fatalmente cairá na idolatria. Essa frase, quando interpretada, significa que o único caminho é aquele representado pelo Nascimento e pelo desenvolvimento daquilo que significa Jesus, ou seja, a consciência espiritual em nós.

            E o evento representado nos Evangelhos pelo Nascimento do Menino Jesus simboliza justamente o aparecimento definitivo dessa consciência espiritual no coração e na mente do ser humano, que ocorre no momento da primeira das Grandes Iniciações.

 

 

            “Na primeira grande Iniciação, o Cristo nasce no discípulo. É então que este conscientiza pela primeira vez, em si mesmo, a afluência do Amor divino e experimenta a maravilhosa mudança que o faz sentir-se uno com tudo o que vive. Este é o “Segundo Nascimento” de que regozijam todos os seres celestiais, porque ele nasce no “Reino dos Céus”, como um dos “pequeninos”, como uma “criança”, nomes sempre aplicados aos novos Iniciados. Tal é o significado das palavras de Jesus, as de que um homem deve tornar-se uma criança para entrar no “Reino””. (De Belém ao Calvário, p. 53, citando Annie Besant, Cristianismo Esotérico, pp. 53, 54, 185, 286)
 

 

            Assim, o Nascimento do Menino Jesus dentro de nós fala do momento em que em nós nasce, definitivamente, uma nova e verdadeira espiritualidade, uma luz, um amor e uma bem-aventurança, características de um determinado nível de vivência da Consciência Divina. O cerne da nossa verdadeira humanidade é a Luz Divina dentro de nós. E quando nascemos para isso de verdade e começamos a ter real contato com essa Luz, ela passa a afetar nossa vida, não como uma teoria, mas como um fato, uma vivência transformadora. Você vai tratar todos os demais de forma diferente, incluindo aí os animais, ou seja, com a amorosidade que é um reflexo da consciência da unidade de toda a vida manifestada.

 

 

            “O novo nascimento nos levou a um ponto onde nos tornamos conscientes de um novo mundo de luz e de ser. Mediante o processo daquela iniciação, convertemo-nos em cidadãos do reino de Deus que o Cristo veio estabelecer como uma realidade na consciência do homem; pelo novo nascimento, passamos a um mundo regido por uma série de leis superiores, espirituais, e novos objetivos se abrem diante de nós, surgem novos aspectos de nossa oculta natureza espiritual e começamos a descobrir, em nós mesmos, o delineamento de um novo ser, com diferentes gostos, desejos, ideais e métodos de atividade mundana”. (De Belém ao Calvário, p. 92)
 

 

            A Estrela que aparece no Nascimento do Menino Jesus, como quase todos os demais elementos presentes nesse cenário, também é eminentemente simbólica. Como já mencionamos anteriormente, a Estrela é um símbolo, entre outras coisas, da aquiescência e da presença dos Grandes Chefes da Igreja Celestial nesse momento de grande expansão da consciência espiritual ou, alegoricamente, do nascimento de uma nova consciência.

            No Oriente, na tradição budista, essa Iniciação, simbolizada pelo Nascimento do Menino Jesus, é mencionada sob o símbolo do “ingresso na corrente”. A pessoa entrou na corrente, ou seja, entrou no rio da espiritualidade – esse é um marco. E esse marco é auxiliado e ratificado pelos Pastores da humanidade, simbolizados pela Estrela e pelos Reis Magos, que são os Mestres, os Tutores daquela Alma que está nascendo definitivamente para um novo patamar de espiritualidade. Tanto a Estrela quanto esses Reis Magos simbolizam a presença da Igreja Celestial, da Hierarquia Sagrada ou, se quisermos, de Deus, nesse evento tão marcante na trajetória evolutiva das nossas Almas.

            No sonho de Jacó, como em outras passagens da Bíblia, nos é relatada uma visão dessa conexão existente entre todas as Almas em seus diferentes níveis evolutivos, mediadas por toda uma Hierarquia Celestial que vai ascendendo até a Divindade. Uma Hierarquia composta por seres tanto da evolução humana quanto pertencentes à evolução angélica:

 

            “Partiu, pois, Jacó de Beer-Seba e se foi em direção a Harã; e chegou a um lugar onde passou a noite, porque o sol já se havia posto; e, tomando uma das pedras do lugar e pondo-a debaixo da cabeça, deitou-se ali para dormir.

            Então sonhou: estava posta sobre a terra uma escada, cujo topo chegava ao céu; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela; por cima dela estava o Senhor, que disse: Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaque; esta terra em que estás deitado, eu a darei a ti e à tua descendência; e a tua descendência será como o pó da terra; dilatar-te-ás para o Ocidente, para o Oriente, para o Norte e para o Sul; por meio de ti e da tua descendência serão benditas todas as famílias da terra”. (Gênesis, 28:10-14)

 

            Essa unidade e inter-relação entre todas as coisas, desde o mais baixo até o Alto, segundo nos relatam as obras místicas, é algo que se torna um fato vivenciado pela Alma que está passando por essa primeira Grande Iniciação. Essa Iniciação seria, assim, uma elevação ou expansão da consciência até o nível da consciência búdica ou intuicional, que é o instrumento que nos permite vivenciar a unidade e a inter-relação entre todas as coisas como um fato, e não como uma teoria abstrata.

 

 

            “Mas é o Cristo Jesus dentro de nós, ou o homem que renasceu de alma e espírito puros, como o próprio Jesus declarou que todos devem nascer – exatamente do mesmo modo como se descreve que Ele nasceu – a quem buscamos para nos salvar. E os meios são Sua cruz de auto-sacrifício, renúncia, e pureza de vida; e a recepção em nós mesmos daquele “Sangue de Deus” que não é nenhum sangue meramente físico – com o qual as imperfeições morais não possuem nenhuma relação – mas que é a vida de Deus, o próprio Espírito puro, o qual é Deus, e o qual Deus está sempre derramando em abundância para o bem de Suas criaturas, dando a elas de sua própria vida e substância”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo), capítulo O Vegetarianismo e a Bíblia, p. 222]

 

 

 

            Batismo no Jordão

 

            O Batismo no Jordão simboliza a segunda das Grandes Iniciações. Na hora de batizar Jesus, o próprio São João Batista diz que ele é quem deveria ser batizado por Jesus, reconhecendo que estava diante de alguém superior a si mesmo quanto à maturidade espiritual.

 

 

            “Então veio Jesus da Galiléia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado por ele. Mas João o impedia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?

            Jesus, porém, lhe respondeu: Consente agora; porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele consentiu”. (Mateus, 3:13-15)

 

 

            Nesse momento Jesus representa a Alma amadurecida, a Alma que nasceu espiritualmente e está crescendo, que se espiritualizou e que agora chega ao momento de uma nova iluminação, de uma nova expansão de consciência, representada na Bíblia pela descida do Espírito Santo sobre ele.

 

 

            “E sendo Jesus batizado, saiu logo da água e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, e vindo sobre ele.

            E eis que uma voz dos céus dizia: “Este é meu filho amado, em que me comprazo”. (Mateus, 3:16-17)

            Nestas simples palavras se narra a história desta iniciação. A Nota-chave é a purificação, encerrando um período de preparação, de silencioso serviço e inaugurando um ciclo de fatigante atividade. (...)

            Há pureza física e pureza moral e há, também, essa pureza magnética que faz do homem um canal de força espiritual. Há pureza psíquica, coisa muito rara de achar, e pureza mental. (...)

            Não pode haver conquista espiritual, sem purificação; não há possibilidade de se ver e manifestar a divindade, sem passar pelas águas purificadoras. (...)

            A purificação nos está sendo imposta e, conseqüentemente, deve produzir-se um sentido mais real dos valores. Uma limpeza dos ideais errôneos, uma purificação racial dos padrões desonestos e objetivos indesejáveis está sendo poderosamente aplicada, nesta época”. (De Belém ao Calvário, p. 95)
 

 

            Essa efusão de um Poder Divino sobre a Alma que alcança esse grau de maturidade, naturalmente a dota de novas faculdades, de novas perspectivas e, em consequência, de novas responsabilidades de serviço aos demais.

 

 

            “Havendo o Cristo criado, em Si mesmo, uma unificação após outra, em benefício da humanidade, aparece diante de João Batista e passa pela segunda iniciação, a da purificação, nas águas do Jordão. Pelo processo do batismo e pelas tentações que se seguiram, o Cristo evidenciou sua maturidade, enfrentou Sua missão e demonstrou ao mundo Sua Pureza e Seu Poder”. (De Belém ao Calvário, p. 94)
 

 

            No momento do Batismo vem a voz do céu, que diz: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” (Mateus, 3:17). Há também o símbolo da pomba descendo sobre Jesus, representando o Espírito Santo. Esses símbolos, naturalmente, representam tanto a luz de uma maior consciência quanto a mansidão e a caridade de um maior amor, correspondentes à elevação espiritual a que a Alma é conduzida conscientemente nessa cerimônia.

            Novamente aqui cabe lembrar que essa Iniciação significa a Alma se abrindo para novas realidades espirituais, vivenciando novas dimensões “ao vivo” e não de forma intelectual. Isso é muito mais marcante e transformador do que um mero entendimento teórico, por meio do pensamento, da intelectualidade.

            A partir desse momento, essa efusão do Espírito Santo, nos dá idéia de que, caso ainda não tenha sido alcançada, a partir dessa Iniciação a mente alcança uma poderosa genialidade mental; porém, como nos comunica a idéia da pomba, esse poder e essa genialidade estão fundidos a uma amorosidade, ou seja, uma inofensividade, uma caridade e uma compaixão impessoal.

 

 

            “O batismo no Jordão simboliza a purificação da consciência no homem, do mesmo modo que o Cristo e Seu batismo simbolizaram, para nós, o divino no homem e a purificação que se segue à atividade desse espírito divino, na natureza inferior. A consciência, com seu chamado ao reconhecimento dos valores superiores, das verdades mais profundas e do nascimento à vida, leva-nos ao Jordão. Por isso, o Cristo foi ali para “cumprir toda a Justiça”. Esta experiência sempre precede ao batismo em Cristo e pelo Cristo”. (De Belém ao Calvário, p. 97)
 

 

            É significativo ainda lembrar que essas novas faculdades resultam em um novo período de serviço que é simbolizado na Bíblia pelas tentações no deserto, pois a Alma agora, de fato, alcança um poder significativo cujo exercício implicará em muitas provações. Essas provações e o exercício desse poder de forma impessoal e compassiva preparam a alma para, no seu devido tempo, alcançar o seguinte grande momento de expansão da consciência.

 

 

            Transfiguração no Alto do  Monte

 

            A Transfiguração no Monte simboliza a terceira das Grandes Iniciações. Nesse momento da trajetória evolutiva da Alma, quando a Alma alcança a maturidade para merecer essa nova efusão, do Poder, do Amor e da Glória Divina, esse nível de expansão da consciência permite que a Alma alcance, em miniatura, a capacidade de refletir a perfeição de Deus. É isso o que parece estar simbolizado pelas vestes absolutamente brancas e pelo brilho impossível de ser diretamente encarado pelos próprios apóstolos, em que se transfigurou a Alma, assim glorificada, do Filho de Deus e do Homem.

 

 

            “A terceira iniciação, a da Transfiguração, deu testemunho da unificação que o Cristo realizara entre corpo e alma. A integração era completa e a conseqüente iluminação tornou-se evidente para Seus discípulos. Apareceu diante deles como Filho do Homem e Filho de Deus e, lhes havendo provado Quem era, encarou a morte que o esperava, assim como o interveniente serviço que realizaria”. (De Belém ao Calvário, p. 94)
 

 

            Nesse ponto, assim podemos ler, caso já não tenham ocorrido antes, os siddhis ou faculdades ou poderes psíquicos, vão sendo naturalmente despertados na Alma assim Iniciada, pois a efusão do Amor e da Consciência Divina presentes nessa fase, que correspondem ao que no Oriente são chamados de siddhis maiores (ou poderes propriamente espirituais), praticamente implica na necessidade de que os siddhis menores (ou poderes psíquicos, como a clarividência, a clariaudiência, o domínio dos espíritos elementais da natureza, e assim por diante) venham em serviço a esse poder maior, espiritual, que agora se faz manifesto na consciência e na vida do Iniciado.

            Nesse estágio evolutivo, como já nos referimos anteriormente, essas experiências estão muito distantes das concepções meramente intelectuais – o discípulo passa a vivenciar essas realidades suprafísicas e, em consequência, elas lhe conferem um grande poder. Para aqueles que não estão devidamente amadurecidos espiritualmente, sobretudo em termos éticos ou de uma genuína moralidade espiritual, o melhor é não possuir esses poderes, pois, como sugerido na passagem da Transfiguração no Alto do Monte, simbolicamente, a luz pode cegar os que não estão preparados ou, antes mesmo disso, as tentações serão imensas, conforme simbolizado pelo demônio tentando a Jesus no deserto.

 

 

            “O finito e o infinito devem ser traduzidos a uma relação íntima. Isto, o Cristo demonstrou na Transfiguração, quando, por intermédio de uma personalidade purificada e desenvolvida, Ele manifestou a natureza e a qualidade de Deus. A natureza finita tinha sido transcendida e não mais podia controlar suas atividades. Ele passara, em Sua consciência, ao reino da conscientização inclusiva, e as regras ordinariamente governantes do indivíduo finito, com seus problemas medíocres e sua pequena reação aos acontecimentos e pessoas, não mais poderiam influenciá-Lo nem determinar Sua conduta. Ele alcançara o contato com aquele reino do ser no qual há, não somente compreensão, mas paz, através da unidade.

(...)

            O Cristo, portanto, na Transfiguração, uniu em Si Próprio Deus e o Homem, Sua Personalidade desenvolvida fundindo-se com Sua Individualidade”. (De Belém ao Calvário, p. 132)
 

 

            Nesse nível pode-se dizer que a morte não tem mais o mesmo sentido que tem para a grande maioria da humanidade. Como dizia Mme. Blavatsky, “minhas noites são meus dias e meus dias são minhas noites”. Para ela, a vida durante o dia, no meio das pessoas comuns, era como noite, o esquecimento, a coisa não real; quando ela dormia se encontrava com os Grandes Seres, como uma aluna (discípula ou upasika) na Escola dos verdadeiros Mestres. A noite ela se sentia realmente viva. Por isso, com essa vivência, a morte perde sentido porque a pessoa sabe que quando morrer vai viver nesse mundo no qual já vive durante o sono.

 

 

            Crucificação

 

            A Morte de Cristo na Cruz simboliza a quarta das Grandes Iniciações. A Crucificação de Cristo é simbólica. Na verdade, segundo podemos ler no Evangelho da Interpretação, na realidade histórica Jesus nem sequer morreu realmente, naquele momento. Julgaram que Ele estivesse morto, porém Ele havia instruído os discípulos, de antemão, dando instruções de que ele não estaria morto, de que deveriam resgatar o seu corpo e curá-lo.

            Porém isso não tem maior importância, pois as Escrituras Sagradas não podem ser lidas como relatos históricos, como já foi dito. É a sua interpretação como alegorias que pode revelar o seu significado verdadeiro e atemporal, uma vez que diz respeito aos processos vividos por nossas Almas.

            A entrega total é o simbolismo nessa quarta Grande Iniciação. Podemos ler nos Evangelhos a respeito do momento mais intenso da Crucificação:

 

            “Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. (Mateus, 27:46)

 

            Todo esse processo parece aludir à superação das últimas ilusões a que pode estar submetida a Alma humana. Superadas essas provações finais, há uma entrega total que pode estar aludida naquelas últimas palavras, segundo relato do Evangelista, acerca do Cristo Jesus antes da morte:

 

            “Jesus, clamando com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isso, expirou”. (Lucas, 23:46)

 

            As ilusões mais arraigadas, os apegos pessoais mais difíceis de serem abandonados, são percebidos como uma morte. São aquelas coisas que nos mantêm ainda submetidos ao poder da Grande Ilusão, representada pela deusa Maya no Oriente. Elas são as raízes mais profundas do nosso egocentrismo, que obstaculizam o vôo livre da nossa Alma, impedindo que a nossa consciência se eleve à Realidade Divina.

 

 

            “Na quarta iniciação demonstrou esta integração, não só como Homem-Deus, senão também como Aquele que abarcava, em sua consciência, o inteiro mundo dos homens. Unificou-se com a humanidade, retratando a efetividade dessa divina energia que O capacitou para dizer, com toda a verdade: “E eu, quando for levantado da Terra, atrairei todos a Mim” (João, 12:32). Foi levantado, da Terra ao Céu, e durante dois mil anos Suas palavras têm permanecido inalteráveis”. (De Belém ao Calvário, p. 94)
 

 

            Nessa iniciação, de alguma maneira, a pessoa enfrenta esses obstáculos e a única maneira de realizar esse enfrentamento é ter uma entrega total. Vemos essa entrega nas palavras de Jesus:

 

            “Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas. (...)

            Por isto o Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar.

            Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho autoridade para a dar, e tenho autoridade para retomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai”. (João, 10:11, 17-18)

 

            Vemos nessa passagem que Jesus se deu voluntariamente – não por castigo – e quis, por sua própria vontade, se entregar para auxiliar o soerguimento da humanidade. Ele se transformou num Sol curador, num Salvador dos homens. Essa magnífica realização do Cristo em nós que foi alcançada pelo Cristo Jesus, não é algo único na história da humanidade como a idolatria sectarista nos quer fazer crer. É um magnífico estado de realização espiritual no qual a Alma mais e mais se une com o Sol da Consciência Divina, transformando-se num Cristo, num Salvador.

 

 

            “Novamente, são esses vários estágios desse processo que estão representados na história do Evangelho do típico homem regenerado. Sejam eles chamados de água e espírito, ou de alma pura e a divina operação que nela ocorre, ou da Virgem Maria e o Espírito Santo, é desses dois dentro de cada homem que finalmente é redimido, que o homem novo, ou o homem regenerado, o Cristo Jesus – que sempre é o “único Filho gerado por Deus” (“Filho único de Deus”) [João, 3:16, 18] – é produzido.

            E é sempre pela crucificação e morte na cruz da renúncia daquele velho Adão, o ser inferior, e a ressurreição e ascensão para uma condição de perfeição verdadeira que a salvação é finalmente alcançada. E a razão pela qual todas essas verdades eternas na história da alma foram centralmente colocadas na vida do profeta de Nazaré é simplesmente porque, reconhecendo nele os sinais ou testemunho de sua realização de perfeição num grau nunca antes alcançado, e em sua história as adequadas correspondências simbólicas, o Espírito Divino, sob cuja inspiração os Evangelhos foram compostos, o selecionou como o ícone das possibilidades da humanidade em geral”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo), capítulo O Vegetarianismo e a Bíblia, pp. 221-222]
 

 

            Como também está escrito nos Evangelhos: “Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que crê em mim, esse também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas”. (João, 14:12)

 

 

            “A maior tarefa de Cristo foi o estabelecimento do reino de Deus na terra. Ele nos mostrou o caminho pelo qual a humanidade poderia entrar naquele reino – sujeitando a natureza inferior à morte da cruz e elevando-se pelo poder do Cristo interno. Cada um de nós tem que trilhar o caminho da cruz sozinho e entrar no reino de Deus pelo direito da conquista”. (De Belém ao Calvário, p. 184)
 

 

 

            Ressurreição

 

            A Ressurreição simboliza a quinta das Grandes Iniciações. Nessa Iniciação a Alma transpõe a última fronteira do que poderíamos denominar de reino humano e ingressa, definitivamente, no Reino de Deus, tornando-se como uma parte perene do grande Sol da Consciência Divina.

 

 

            “A ressurreição não é o levantar dos mortos de seus túmulos, mas a passagem da morte da auto-absorção para a vida do amor altruísta, a transição das trevas do individualismo egoísta para a luz do espírito universal, da falsidade para a verdade, da escravidão do mundo para a liberdade do eterno. A criança ‘geme e trabalha sofrendo’ para ser libertada da prisão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus!”. (De Belém ao Calvário, p. 222, citando S. Radhakrishna, The Supreme Spiritual Ideal, Hibbert Journal, outubro, 1936)
 

 

            Na Quinta Iniciação a Alma, alegoricamente, alcançou a “outra margem”. Há uma frase da tradição budista que diz: “Poucos são os homens que chegam à outra margem do rio; a maioria deles se contenta em permanecer na mesma margem, subindo e descendo-a” (Dhammapada, 49a).

 

 

            “A vida do amor ainda cresce, sempre mais plena e mais perfeita, resplandecendo o Filho do Homem cada vez mais claramente como Filho de Deus, até que se aproxima o tempo da batalha final, e a quarta grande Iniciação o conduz em triunfo para dentro de Jerusalém, à vista do Getsêmani e do Calvário. Agora ele é o Cristo pronto para ser imolado, pronto para o sacrifício na cruz. Agora ele deve enfrentar a mais dura agonia no Jardim, onde até mesmo os seus escolhidos dormem enquanto ele se debate em sua angústia mortal, e por um momento ele ora para que a taça possa se afastar de seus lábios; mas a vontade poderosa triunfa e ele estende sua mão para tomar e beber, e em sua solidão chega-lhe um anjo e o conforta, como costumam fazer os anjos quando vêem um Filho do Homem curvando debaixo do peso da agonia. A bebida da amarga taça da traição, da deserção, da negação, o encontra à medida que ele avança, e sozinho entre seus inimigos escarnecendo ele se adianta para sua última e terrível provação. Abatido pela dor física, perfurado pelos cruéis espinhos da suspeita, despojado de seus belos trajes de pureza diante dos olhos do mundo, entregue nas mãos dos inimigos, aparentemente abandonado por Deus e pelos homens, ele suporta pacientemente tudo o que lhe sucede, ansiando por ajuda em seu último transe. Deixado sozinho para sofrer, crucificado, para morrer para a vida da forma, para desistir de toda a vida que pertence ao mundo inferior, rodeado de inimigos triunfantes que lhe zombam, o derradeiro horror da grande escuridão o envolve, e na escuridão ele enfrenta todas as forças do mal; sua visão interna é fechada, ele sente-se sozinho, completamente sozinho, até que o grande coração, mergulhando no desespero, grita para o Pai que parece tê-lo abandonado, e a alma humana enfrenta, na mais absoluta solidão, a arrasadora agonia da derrota aparente. Porém, reunindo toda a força do “espírito invencível”, a vida inferior é entregue, sua morte é abraçada voluntariamente, o corpo de desejos é abandonado, e o Iniciado “desce ao Inferno”, para que nenhuma região do universo que ele deve ajudar permaneça desconhecida por ele, para que ninguém seja considerado abjeto demais para receber seu amor todo-abrangente. E então, emergindo das trevas, ele vê a luz mais uma vez, sente-se de novo o Filho, inseparável do Pai que é ele próprio, e passa para a vida que não conhece término, radiante na consciência da morte enfrentada e vencida, forte para ajudar ao máximo cada filho do homem, capaz de derramar sua vida em cada alma em luta. Entre seus discípulos ele permanece por perto para ensinar, desvelando-lhes os Mistérios dos mundos espirituais, preparando-os para trilhar a vereda que ele trilhou, até que, terminada a vida terrena, ele ascenda ao Pai, e, na quinta grande Iniciação, se torne Mestre triunfante, um elo entre Deus e o homem”. (Cristianismo Esotérico, pp. 110-111)
 

 

            Acerca dessas realidades tão sublimes, já distantes de nossas mentes limitadas por tantas ilusões, é difícil, com serenidade, tecer comentários. Assim, parece-nos mais apropriado trazermos algumas citações daqueles que supomos mais capacitados. No caso, trazemos passagens da obra da Sra. Alice Bailey, De Belém ao Calvário. Porém, não parece demasiado lembrar que passagens análogas podem ser encontradas em outras obras e em outros autores que já anteriormente mencionamos.

 

            “... esta é a lição da Crucificação e da Ressurreição: a natureza inferior deve morrer para que a superior possa manifestar-se e a eterna alma imortal em todo homem deve erguer-se do túmulo da matéria”. (p. 178)

            “A criança em Cristo, o menino pequeno, o homem maduro, o homem perfeito! Pela experiência de Belém, nasce o menino. O infante cresce, até chegar à maturidade e se manifesta em sua pureza e poder, no batismo. Apresenta-se, na Transfiguração, como o homem maduro e, na Cruz, representa o perfeito Filho de Deus. Uma iniciação constitui aquele momento em que o homem sente e sabe, através de cada parte de seu ser, que a vida é realidade e que a realidade é a vida”. (p. 102)

 

            “No nascimento em Belém, temos o aparecimento de Deus, Deus se manifesta em carne. Na Transfiguração temos a qualidade de Deus revelada em sua transcendente beleza, ao passo que na iniciação da Ressurreição, o aspecto vida da divindade faz sentir sua presença. (...)

            Toda a história da iniciação é contada nesses cinco episódios; o nascimento, a subseqüente purificação para que a correta manifestação da Divindade se pudesse seguir, a revelação da natureza de Deus por intermédio de uma personalidade transfigurada e, finalmente, o objetivo – a vida eterna e sem fim, porque descentralizada e liberta das limitações auto-impostas da forma”. (p. 128)

 

            “A ressurreição, portanto, poderia ser definida como a persistência no futuro daquilo que é o divino aspecto, e que está integrado com a vida e a consciência daquela totalidade a que chamamos Deus. Aquela vida e aquela consciência fluem através de todas as partes da manifestação divina, o mundo natural. Os reinos da natureza evoluíram um a um e, ao assim fazerem, expressaram algum aspecto de Sua vida à medida que ela informa e anima Sua criação. Um a um, eles firmemente progrediram da consciência inerte e do ritmo lento e pesado do reino mineral, e revelaram seqüencialmente mais e mais da divina natureza oculta, até chegarmos ao homem cuja consciência é de uma ordem muito mais elevada e cuja divina expressão é aquela da Divindade auto-consciente e auto-determinada. Das formas automáticas de consciência, a vida de Deus conduziu as formas de vida através da consciência sensível, até a consciência instintiva do animal; depois ela prosseguiu até o reino humano, onde a consciência de si mesmo domina, até os membros mais elevados daquele reino começarem a mostrar uma disposição para a divindade. Os tênues, fracos sinais de um reino ainda mais elevado podem agora ser vistos, no qual a consciência própria dará lugar à consciência grupal e o homem saberá que ele é identificado como o Todo, e não simplesmente um indivíduo auto-suficiente. Então a vida do corpo todo de Deus poderá fluir conscientemente para e através dele, e a vida de Deus se torna sua vida e ele ressuscita para a vida eterna”. (pp. 222-223)

 

 

VIVIANE: Falando da Terceira Iniciação você comentou que a MMe. Blavatsky se encontrava com os Grandes Seres em uma Escola de Mestres enquanto dormia. Quem são esses Grandes Seres?

 

ARNALDO: São Aqueles que poderíamos classificar como Irmãos Mais Velhos da nossa humanidade. São seres como o Sr. Jesus, o Sr. Gautama, Sri Krishna, Sankarasharya, Hermes Trismegistros, Orfeu e os demais Seres dessa estatura registrados ou não registrados nos anais humanos, seja no Cristianismo, no Budismo, seja em qualquer outra grande tradição. Eles estão presentes também aqui em nosso planeta, como a Hierarquia Sagrada, como a Igreja Celestial, como os Pastores da nossa humanidade, trabalhando pela edificação espiritual e pela evolução em geral de nosso globo, assim como, por analogia, deve haver hierarquias semelhantes em outros globos, quer de nosso Sistema Solar, quer de outros sistemas mais distantes pela infinitude do universo.

            À medida que o ser humano se eleva deverá, necessariamente, convergir ou aproximar-se conscientemente desses Seres Iluminados, desses Filhos de Deus que existem segundo todas as tradições religiosas, e estão infatigavelmente nos guiando.

            Como cientista social, por muito tempo me perguntava: “Onde estão esses Grandes Seres, esses Seres Divinos, que não trazem harmonia para essa humanidade?” Esse questionamento me angustiava porque os problemas, a dor, a miséria que estão aí são tão gritantes e, por anos da minha vida, fiquei me perguntando onde estariam esses Grandes Seres, que não encaminhavam soluções para essas dores, para esses problemas.

            Minha visão mudou diametralmente, graças a um aprofundamento da minha capacidade de percepção, até mesmo graças aos meus estudos de ciências sociais, especialmente de ciência política. Hoje percebo que se a humanidade continua sobrevivendo, se grandes sistemas econômicos e sociais em geral continuam razoavelmente operando, se a barbárie sem fim não toma conta – o que deveria ocorrer ao analisarmos as conseqüências desastrosas das equivocadas idéias dominantes – isso apenas não ocorre por uma espécie de “milagre” que acontece todos os dias. E esse “milagre”, por assim dizer, significa a intervenção, o trabalho contínuo de inspiração, de correção, de amparo e de tantas outras formas, por parte desses Grandes Seres e de seus auxiliares humanos e angélicos.

            Esses Seres estão em nosso planeta, quer vestindo formas físicas, quer formas hiperfísicas nos planos superiores do mundo emocional, do mundo mental, e assim por diante. Eles são os Chefes do que no Cristianismo se chama de Comunhão dos Santos e também da Igreja Celestial. Em nossa época, muito da literatura mística se refere ao conjunto dessa Irmandade como Hierarquia Sagrada ou Grande Fraternidade.

            Como disse, Eles estão no nosso planeta e trabalham incansavelmente em prol de toda vida e, à medida que vamos amadurecendo, naturalmente nos aproximamos desses Grandes Seres. Todos esses Grandes Seres que citei estão no mesmo diapasão, todos atuando no mesmo Serviço Divino. Eles se complementam numa grande Corte Celestial. E quando nos aproximamos Deles acontece como o indicado pelo próprio nome da literatura mais sagrada do Hinduísmo, o Upanishade – que quer dizer “estar próximo a”, ou seja, o discípulo próximo dos Mestres, dos Instrutores Divinos.

 

 

VIVIANE: Como podemos entrar em contato com esses Grandes Seres?

 

ARNALDO: As pessoas que já têm a necessária maturidade espiritual, que já desenvolveram, ao menos em razoável medida as qualidades do discernimento, do desapego, da retidão e do amor impessoal, podem ter contato com esses Grandes Seres de uma forma ou de outra, como, não raro, durante a parte da vida que chamamos de sono.

            Quando dormimos, o corpo físico fica ali, em repouso, e o corpo astral sai e fica preso por um cordão conhecido como “cordão de prata”. Essa é a nossa vida onírica, a vida astral durante o sono. As pessoas que vão adquirindo certa estatura, certo grau de conhecimento, quando chega a noite podem ser convidadas, segundo seu merecimento, repetimos, a participar de escolas preparatórias e de grupos de serviço de vários tipos em prol da humanidade. Escolas essas e grupos esses dirigidos por esses Grandes Seres ou pelos seus Santos e Iniciados auxiliares.

            Como disse o Sr. Ramana Maharsi, “Só aquilo que é natural é permanente. E só aquilo que é permanente vale a pena ser buscado”. Para aqueles que alcançaram certo grau de maturidade psicoespiritual, torna-se algo bastante natural em suas vidas procurar voluntariamente servir a humanidade colocando-se ao dispor desses que são, como já dissemos, os Pastores de nossa família humana.

            Para esses, essa busca, muito naturalmente, torna-se como o objeto de suas vidas. Como diz o ditado: “Onde está teu pensamento, está teu coração; onde está teu coração, está teu tesouro”. O encontro com esses Grandes Seres, verdadeiros Mestres, acontece quase que necessariamente na vida daqueles para os quais essa busca se tornou seu verdadeiro tesouro – não uma curiosidade científica, acadêmica, ou meramente intelectual e, menos ainda, uma fuga das duras realidades desse nosso mundo. Como diz o Evangelho: “Pedí, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á”. (Mateus, 7:7)

            Esse é o coração, a parte essencial, do verdadeiro caminho religioso. É o caminho da vida santificada que, pelas suas características intrínsecas, precisa florescer no jardim da discrição e do silêncio.

 

 

VIVIANE: Por que Eles continuam ajudando a Terra?

 

ARNALDO: Uma vez perguntaram algo semelhante para o Sr. Krishnamurti. Ele respondeu: “Pergunte para uma flor por que ela exala seu perfume”. É da natureza amorosa desses Grandes Seres, é o Seu lugar, a Sua missão, o Seu trabalho fazer isso. Eles naturalmente desempenham essas funções, com total liberdade. Porém, quando a consciência alcança, mais e mais, a fusão com o Sol da Consciência Divina, parece correto afirmar que a liberdade e a lei se convertem em uma mesma coisa.

            Eles são como os Olhos de Deus que nos velam, as Mãos de Deus que nos socorrem, porque Eles se transformaram em raios do Sol da Consciência Divina. Então, o que a mão faz? Aperta, tateia, é útil. Assim é a natureza Deles – estão aqui para isso.

            E todos aqueles que se aproximarem dos Grandes Seres, que são os verdadeiros Pastores de nossa humanidade, deverão chegar a esse conhecimento. Refiro-me aos Discípulos, aos Santos, aos Iniciados, que constituem a Comunhão dos Santos, que participam conscientemente da Igreja Celestial.

            Há um pequeno conto que me parece oferecer uma resposta a essa sua pergunta. É do Sr. Rabindranath Tagore, o grande poeta e místico indiano, que já foi laureado com o Prêmio Nobel. Na sua obra Sadhana (Caminho Espiritual) ele nos conta uma pequena história na qual um homem estava muito preocupado andando por uma estrada, refletindo “Por que tanta miséria se há um Deus que é puro amor? Por que há tanto mal nesse mundo? Será que haveria algum sábio que pudesse me orientar quanto a isso?” Ele estava crivado de dúvidas sinceras nesse caminhar.

            Então ele percebeu dois seres no caminho, que lhe chamaram a atenção pela postura. Notou que eles tinham algo diferente e ousou lhes dirigir a palavra: “Por favor, poderiam me dizer qual é a religião de vocês? Vejo que vocês têm uma paz e uma aparência muito espiritual”. Os seres se olharam e um deles respondeu: “Nossa religião é muito simples. Nós procuramos, com a ajuda dos Grandes Seres, dos Seres Divinos, conhecer nossa própria Alma e, através dela, conhecer todas as coisas”.

            O homem ficou surpreso, sem saber o que dizer, diante de tamanha simplicidade e pôde apenas perguntar: “Esses Grandes Seres realmente existem? Eles acodem?” Ao que os homens, com um caridoso sorriso, responderam: “Devem acudir, a um e a todos. É o trabalho deles”.

            Esse é um conhecimento universal. Todos os Santos e Místicos de todas as tradições e de todas as religiões afirmam isso.

 

 

VIVIANE: Quando você fala dessa sequência das Iniciações no Cristianismo, que segue em um crescendo evolutivo, esse tema lembra bastante a Roda de Samsara budista, não é?

 

ARNALDO: Sim. E isso já vinha do Hinduísmo, o qual o Senhor Buda em boa medida restaurou, uma vez que estava bastante degradado. Em continuidade, o Cristo Jesus complementou essa grande obra.

            Na Ressurreição, você se liberta dos últimos apegos e ilusões inerentes à Roda de Samsara e ingressa no Reino Divino de forma definitiva e permanente. Deve ser como se a consciência liberta se tornasse parte da glória da Luz Divina.

            Neste estágio a Alma se liga ao Divino de forma permanente – é quando chega à “outra margem do rio”. Entrar na corrente é só a primeira etapa; a outra margem, do outro lado do rio, é a Realidade Divina, a qual é representada no Cristianismo pelo Reino de Deus, e a entrada nesse Reino significa a Libertação – parcial ou total, dependendo da Iniciação – da Roda de Samsara.

 

 

VIVIANE: O Budismo é como um “mapa” do Cristianismo para chegar à outra margem?

 

ARNALDO: Costumo dizer que se você tem um mapa correto, tem uma chance de chegar ao destino. Não é certo que vá chegar, mas há uma chance. Mas sem uma doutrina correta, você não tem nem essa chance. Se eu estou em Brasília, quero ir para o Rio Grande do Sul, mas meu mapa aponta que o Rio Grande do Sul está no norte, como vou chegar lá? Não tem como.

            Levando adiante essa imagem do mapa, podemos dizer que o Budismo nos apresenta um grande mapa simplificado e que o Cristianismo dota essa mapa de todo um detalhamento que torna esse mapa muito mais preciso, muito mais claro, sobretudo, nas áreas mais elevadas ou mais difíceis de serem percorridas. Essas etapas dizem respeito às etapas superiores da evolução da alma humana em seu retorno ao Reino de Deus, à Casa do Pai, ao Oceano de Luz da Realidade Divina.

            Quando você tem um mapa correto, como disse, você tem uma chance, pois há um senso correto da direção a ser seguida. Mas, ainda há todos os obstáculos concretos que sempre surgem na vida de todo viajante ou caminhante espiritual.

            Esses obstáculos requerem algo mais do que um mapa correto. Eles requerem a Luz Viva da Sabedoria para serem vencidos. Não obstante, o mapa correto é muito importante, pois nos dá uma chance. E não é por acaso que a Reta Doutrina é o primeiro dos oito eixos da Roda Budista, ou a primeira das oito etapas do Nobre Óctuplo Caminho.

 

 

VIVIANE: E não são poucos os obstáculos.

 

ARNALDO: Há muitos obstáculos. Se a pessoa pensar bem, se usar coerentemente o pensamento e tiver um bom mapa, há boas chances de chegar lá. Mas se nem um mapa eu tenho, como vou chegar? Que chance eu tenho?

            Além disso, do ponto de vista espiritual, ninguém pega ninguém no colo. Do ponto de vista material é nossa obrigação pegar as pessoas que têm menos do que nós no colo, como a mãe pega o filho e amamenta. É nosso dever e, em consequência, nosso Carma coletivo. Não há como escapar da consequência de não ter procurado proteger e orientar aqueles que são menores do que nós – lembremos do Tribunal de Anúbis, da tradição egípcia, que é uma alegoria para algo que realmente existe: o julgamento após a morte.

            Do ponto de vista espiritual todos nós temos que nos tornar humanos, despertar o ser humano dentro de nós – e, para tanto, precisamos encontrar o que é simbolizado pela mulher dentro de nós – sejamos pessoas do sexo masculino ou feminino. Ninguém faz isso por nós; ou nós entendemos e buscamos essa realidade dentro de nós ou não vamos adiante.

 

 

            “Uma tarefa ainda maior e mais gloriosa espera para ser realizada. Andrômeda, a Alma, a melhor parte do Homem, está a ponto de ser inteiramente devorada pelo dragão maligno da Negação, que é o agente da natureza inferior, e o destruidor de todas as esperanças da humanidade. Seu nome – idêntico aos termos com os quais é descrita a primeira Mulher da história dos hebreus – a aponta como a companheira e regente do homem; sua paternidade indica a origem da Alma, que nasce do Fogo astral ou Éter, simbolizado pela terra da Etiópia; os grilhões de bronze com que ela é presa à rocha são o símbolo da atual escravidão do Divino no homem a sua parte material; e a sua redenção, casamento, e exaltação pelo herói Perseu, prenunciam o coroamento e a realização final do Filho de Deus, o qual não é outra coisa senão o Ser Humano Espiritual fortalecido e sustentado pela Sabedoria e pelo Pensamento”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), prefácio da primeira edição, p.LXXXIII]
 

 

 

            Esse é o ensinamento tanto do Senhor Buda quanto do Senhor Cristo Jesus. Ensinamento de fé na capacidade humana de entender as coisas, de resolver os nossos problemas, inclusive os problemas relacionados com a realização espiritual.

            Na nossa cultura atual, ser humano é sinônimo de coisa falível, cheia de limitações.

            Na visão do Evangelho da Interpretação, que a Dra. Kingsford e Maitland nos legaram, ser verdadeiramente humano significa realizar o conhecimento vivo de ser Filho de Deus, ser um pensador (man, o homem, vem do sânscrito manas, que significa mente, pensamento), com liberdade e profundidade, que desperta em nós a verdadeira inteligência (inter-legere: ver dentro), capacidade que é simbolizada pelo Fogo do Espírito Divino descendo sobre nós. Essa capacidade, quando real ou genuína, nos conduz naturalmente à profundidade do amor e da compaixão em nossos corações e mentes.

 

 

            “… todos os genuínos Buscadores da Perfeição, cuja devoção aos ideais mais elevados os tornou redentores de sua espécie, mostraram aos homens como dominar e se elevar acima dos elementos inferiores de suas naturezas e, assim, tornarem-se verdadeiramente humanos”. [Addresses and Essays on Vegetarianism (Palestras e Ensaios sobre o Vegetarianismo), p. 175]
 

 

            Essa é nossa herança inata por termos sido criados à imagem e semelhança de Deus. Temos em nós essa Semente, esse Raio da Luz Divina. Jesus, conforme os Evangelhos, falou que tudo o que ele fez e ainda mais, nós também podemos fazer.

 

 

            “Em verdade, em verdade, vos digo: quem crê em mim fará as obras que faço e fará até maiores do que elas”. (João, 14:12)
 

 

            Não é por acaso que Jesus afirmou a existência dessa imensa potencialidade dentro de nós. Ser verdadeiramente humano significa desenvolvermos a capacidade de pensar, pois temos essa Chispa do Fogo Divino dentro de nós. Isso que o mundo chama de humano é apenas uma preparação para o humano. É uma expectativa de ser humano, um projeto de ser humano, uma criação que um dia vai ser humano.

            Por isso denominamos a filosofia social derivada dessa visão de Humanitarismo. Essa filosofia é uma afirmação da verdadeira humanidade.

            A Dra. Kingsford tem passagens em que essa glória da verdadeira humanidade fica muito clara, assim como o fato de que enquanto não alcançarmos essa estatura, ainda estamos na infância, ainda somos projetos de verdadeiros seres humanos.

 

 

            “Segundo a doutrina mística, por outro lado, aquele que é humano apenas na forma, é tão somente um homem rudimentar, e pode ser classificado, em todas as questões essenciais, naqueles graus mais baixos de humanidade, ou seja, as plantas e os animais. Ele possui, como eles, apenas a potencialidade de humanidade, e de modo algum a humanidade plenamente realizada. Pois, segundo essa doutrina, o saber é a suprema função do homem; de modo que ele não é propriamente homem enquanto não souber, ou, pelo menos, possuir um órgão para esse saber, e tenha a capacidade de saber. Além disso, o próprio termo saber, tem, em relação a isso, um significado especial. Pois o místico o aplica somente para a cognição a respeito de Realidades. Tão somente isso é para ele saber, o qual tem como seu assunto a natureza do Ser, sua própria natureza, quer dizer, e de Deus; não fenômenos meramente, mas sim Substância, e seu método e sua operação. E, levando-se em conta que, a fim de que possa ter esse saber, o homem deve ter alcançado sua consciência espiritual, segue-se que, segundo a definição mística, o homem não é homem até que tenha alcançado a consciência de sua natureza espiritual. Alcançar isso, e unicamente isso, é alcançar a verdadeira idade adulta do ser humano [do homem]. E, antes dessa realização, o indivíduo é tão somente um infante, incapaz de preencher, ou mesmo de compreender, as funções da maturidade ou plena estatura do homem”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), p. 180-181, negrito do tradutor]

 

 

 

VIVIANE: Como esse mapa do Budismo nos faz perceber melhor o Cristianismo?

 

ARNALDO: Os ensinamentos do Buda Gautama nos oferecem as bases para um entendimento do que é o ser humano, da sua estrutura interna, do funcionamento da sua psique e das ilusões a que está submetido, bem como do caminho para a superação dessas ilusões e, assim, nos permite entender logicamente que o que de fato importa é aquilo que atende às necessidades e aspirações da Alma. Que essas necessidades são sempre interiores e subjetivas, e relacionadas primária e essencialmente com o processo de desenvolvimento da Alma, e apenas secundária e alegoricamente com coisas, eventos e pessoas.

            Com essa base de entendimento podemos entender logicamente que quando a Bíblia fala em Abraão, não está falando de Abraão como uma pessoa. Quando fala de Eva, não está falando de Eva como uma pessoa. Quando fala de Jesus, não está falando de Jesus como uma pessoa. Que todos esses são símbolos que apontam para realidades transcendentes ou espirituais. Que o que interessa é o que Jesus e os demais símbolos representam em relação ao processo de desenvolvimento das nossas Almas, ou seja, o que representam em termos de processos, de estados e de princípios relativos às nossas Almas. Sem a base dos ensinamentos budistas fica quase impossível essa compreensão simples e lógica. Essa harmonização da mente com o coração, por assim dizer. O coração, aqui, representando os ensinamentos do Cristo Jesus, bem como o entendimento da simbologia da Bíblia como um todo.

            Com essa base podemos entender logicamente que Jesus é um estado de espiritualidade que nasce dentro do ser humano. Isso significa o Menino Jesus em nós. O Menino que nasce na simplicidade, na fraternidade e compaixão, inclusive com o reino animal, como na simbologia do Nascimento do Menino Jesus. E quando esse estado se desenvolve, quando esse amor e essa luz divina, que é simbolizada pelo Cristo em nós, cresce em realização do divino em nós, se alcança os estados superiores da realização humana, os estágios da Transfiguração, da Crucificação e da Ressurreição.

            Todo esse vasto panorama fica difícil de ser compreendido sem as bases dos ensinamentos budistas. À luz desses ensinamentos fica natural a compreensão de que não é por acaso que o Nascimento do Menino Jesus é representado num local de grande simplicidade e cercado pelos animais. Nem tampouco é por acaso a presença dos reis Magos e da Estrela nos céus, como já dissemos.

            E assim também que esse Menino cresce e passa pelo Batismo, que requer um grau maior de purificação, o que permite o recebimento da Pomba e do Fogo Divino e o desenvolvimento de maior amorosidade e inofensividade.

            O Jesus em nós, portanto, nasceu antes, cercado pelo amor aos animais, pela simplicidade e pela Reta Forma de Ganhar a Vida. Isso é básico e está bem esclarecido nas primeiras etapas do Nobre Óctuplo Caminho. E se o Cristianismo não desenvolve muito esses detalhes, segundo a Dra. Kingsford, é porque eles já estão claros no Budismo. Era necessário apenas incorporá-los e seguir adiante. E o que mencionei são apenas exemplos da importância dessa complementação mútua.

 

 

VIVIANE: Você explicou que quando trata do Budismo e do Cristianismo não está se referindo a essas religiões como elas se apresentam atualmente.

 

ARNALDO: Sim, com certeza. Quando, dentro do Cristianismo Budista, tratamos do Budismo, estamos falando do que há de melhor no Budismo. Quando falamos do Cristianismo, estamos tratando do que há de melhor no Cristianismo, e corretamente interpretado. Não das superstições e idolatrias dos sacerdotalismos.

            Depois que tanta água passou no longo rio da história humana, que houve tantas glórias, tantas civilizações e também tantos desastres ...  Depois de tudo isso, vieram esses dois grandes Avatares que deram suas vidas – por assim dizer – para nos deixar os ensinamentos que nos legaram. Sem tirar o mérito de tantos outros, a história nos mostra que o Senhor Buda e o Senhor Jesus foram figuras centrais no processo civilizatório dos últimos dois mil e quinhentos anos.

            Eles matizaram a civilização de forma permanente. As primícias do Oriente e as primícias do Ocidente foram desenvolvidas para serem complementares – e se essa união tivesse acontecido, teríamos tido uma religião realmente católica, universal. E, em nossa época, devido aos gigantescos problemas que estamos gerando, à complexidade do sistema mundial de trocas econômicas e de comunicações, o resgate dessa mensagem parece ter se tornado vital, pois, do contrário, dificilmente teremos as bases verdadeiras que nos permitirão superar esses grandes problemas.

            O cristão católico é o cristão budista que não nega o Oriente, que não deixa de perceber a importância de toda a tradição oriental; ao contrário, usa todo esse conhecimento, complementando-o com os ensinamentos que o Cristo Jesus deixou.

            Essa idéia deve estar entre as razões que levaram o Senhor Jesus – assim como o Senhor Buda – a afirmar que não vieram destruir, mas sim complementar o que os demais Profetas e Seres Divinos já haviam construído.

 

 

            “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir”. (Mateus, 5:17)
 

 

 

VIVIANE: O pecado é algo que tem destaque considerável no Cristianismo. Como você vê o pecado à luz dessa visão cristã budista?

 

ARNALDO: Dentro do Cristianismo Budista pecado é qualquer erro, qualquer transgressão da Lei. Transgrediu a Lei é pecado.

 

 

VIVIANE: Qual é essa Lei?

 

ARNALDO: É a Grande Lei, de Ação e Reação, de Causa e Consequência, a Lei da Justiça Divina, chamada no Oriente de Lei do Carma.

            O Apóstolo Paulo resumiu a Lei da Justiça Divina quando escreveu: “Não vos iludais. De Deus não se zomba. O que o homem semear, isso colherá”. (Gálatas, 6:7)

            E em perfeita sintonia com o espírito da Grande Lei da Justiça Divina, o Cristo Jesus assim sintetizou a sua aplicação prática nos assuntos humanos: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. (João, 15:12)

            Esse mandamento resume a chave da aplicação prática dessa Grande Lei – é uma forma prática de podermos saber se estamos aplicando a Grande Lei em nosso cotidiano. Se estamos agindo em relação ao outro exatamente como gostaríamos que os demais agissem em relação a nós.

 

VIVIANE: Então, a partir do momento que eu faço para o outro alguma coisa que eu não quero para mim, eu errei.

 

ARNALDO: Você está fora da sintonia com a Justiça Divina. Para falar em uma linguagem tradicional, agindo assim você está pecando.

 

 

VIVIANE: E se eu só fizer o que quero para mim, mesmo não estando certa?

 

ARNALDO: Pelo menos você está sendo honesta, mesmo que esteja errada. O caminho da honestidade é o melhor caminho para nós; é o caminho da coerência com seu nível de compreensão. Esse é o melhor caminho. Se você errou honestamente, pensando que aquilo era o melhor, vai colher o fruto das suas ações e esses frutos lhe trarão o mais seguro aprendizado e desenvolvimento.

            Essa orientação está perfeitamente no espírito do ensinamento do Senhor Buda, como no exemplo, que vale repetir, de seu Discurso aos Kalamas:

 

             “Não sigam o que foi adquirido pelas muitas repetições; nem pela tradição; nem pelos rumores; nem pelo que está nas escrituras; nem pelas suposições; nem pelos axiomas; nem pelo simples raciocínio; nem pelos preconceitos relativos a alguma questão na qual se ponderou; nem pelas supostas habilidades de outra pessoa; nem pelo status atribuído, como quando se afirma: “O monge é nosso instrutor”. Porém, quando vós mesmos souberem: “Estas coisas são boas; estas coisas não são censuráveis; estas coisas são prezadas pelos sábios; quando postas em prática e observadas estas coisas trazem benefícios e felicidade”, então, aceitem e se apóiem nestas coisas”.

 

VIVIANE: Por que nós erramos?

 

ARNALDO: Por ignorância, como Sócrates e seu discípulo Platão tão claramente nos ensinaram. A alma jovem é representada por Eva. Ela não tem a compreensão do alcance universal da Grande Lei e da sua absoluta infalibilidade. Por isso ela sucumbe à ilusão do imediatismo dos sentidos, cujo centro é a nossa mente concreta, que é simbolizada pelo Homem, pelo Adão, dentro da nossa constituição.

            É da natureza de uma criança ser egoísta e esse egoísmo advém de uma visão de curto alcance. É algo que parece inevitável para as almas mais jovens o fato de que, ao submergirem nos níveis mais densos da manifestação, percam a visão da universalidade da Grande Lei. É como naqueles dias nublados e chuvosos em que chegamos a ficar deprimidos e esquecer que, acima das nuvens cinzentas, o Sol sempre brilha soberano.

            O mundo físico é tido como o nível mais denso da manifestação universal. A Terra, conforme nossos sentidos normalmente a percebem, é um emblema desses níveis inferiores da manifestação. Por isso, quando esquecemos do Sol do Espírito e nos iludimos com a realidade dos níveis inferiores, dizemos que estamos escravizados pelas coisas terrenas e que precisamos recuperar a realização, a visão do Sol, que sempre brilha soberano, além das nuvens das ilusões, nos níveis da Realidade Espiritual.

 

 

VIVIANE: Você disse anteriormente que para seguir a Lei devemos agir em relação ao outro exatamente como gostaríamos que agissem em relação a nós. Entretanto, logo adiante você comenta que a alma jovem perde a visão do todo e reage como a natureza da criança egoísta, com uma visão de curto alcance. Essas duas premissas, a princípio, podem parecer uma contradição.

 

ARNALDO: Quando se orienta que devemos fazer para o outro o que esperamos que façam por nós, essa sugestão considera os diferentes níveis ou capacidades dos indivíduos, ou seja, as diferentes limitações da consciência dos indivíduos, que no mais das vezes não têm uma visão abrangente da Grande Lei. Assim, se ele fizer para o outro o que quer que façam para si, estará fazendo o seu melhor dentro do seu nível de consciência – pois, como na analogia da criança, é necessário que o indivíduo possa gozar de um grau de liberdade coerente com seu nível de entendimento.

            Se for uma alma jovem, essa terá uma visão limitada e colherá o fruto dos seus erros, por não ter a compreensão da universalidade da Grande Lei. Por isso, dizemos que as almas jovens têm a natureza egoísta de uma criança, resultado de uma visão de curto alcance.

            Essa situação de aparente contradição é semelhante àquela aparente contradição que todos os pais vivem. Certa dose de liberdade é necessária para que o infante aprenda com seus próprios erros; porém, essa liberdade não pode ser absoluta, pois isso seria uma falha na necessária proteção por parte dos mais velhos.

            Os ensinamentos de todas as grandes tradições religiosas afirmam a existência de diferentes capacidades ou talentos, como na parábola cristã dos talentos.

 

 

            “Porque é assim como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes entregou os seus bens: a um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade; e seguiu viagem.

            O que recebera cinco talentos foi imediatamente negociar com eles, e ganhou outros cinco; da mesma sorte, o que recebera dois ganhou outros dois; mas o que recebera um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.

            Ora, depois de muito tempo veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles. Então chegando o que recebera cinco talentos, apresentou-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei. Disse-lhe o seu senhor: Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.

            Chegando também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos; eis aqui outros dois que ganhei. Disse-lhe o seu senhor: Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.

            Chegando por fim o que recebera um talento, disse: Senhor, eu te conhecia, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste, e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui esconder na terra o teu talento; eis aqui tens o que é teu. Ao que lhe respondeu o seu senhor: Servo mau e preguiçoso, sabias que ceifo onde não semeei, e recolho onde não joeirei?  Devias então entregar o meu dinheiro aos banqueiros e, vindo eu, tê-lo-ia recebido com juros. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao que tem os dez talentos.

            Porque a todo o que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado”. (Mateus, 25:14-29)

 

 

            Assim sendo, esse conhecimento precisa ser aplicado para a solução dos nossos problemas sociais, a começar pela reta compreensão dos símbolos religiosos. Depois, sendo essa compreensão naturalmente aplicada à formatação de leis mais sábias e justas que configurem as grandes instituições sociais, as formas de organização política e econômica, dos sistemas educacionais e assim por diante, que sejam mais sábias e justas.

            Somente assim as aparentes contradições dos grandes pares de opostos que hoje não encontram compreensão e solução consistentes poderão encontrar tais soluções. Esses principais pares de opostos são, como no exemplo da sua pergunta, a liberdade e o despotismo, mas também o são o prazer e a dor, o masculino e o feminino, o egoísmo e o altruísmo, o certo e o errado, o bem e o mal.

            No século passado o mundo oscilou e agora ainda oscila entre uma exagerada apologia da liberdade – no caso do Liberalismo – e uma exagerada apologia da força e da consequente revolução – no caso do Marxismo. Não temos uma solução consistente para essa aparente contradição, e sem uma correta interpretação dos grandes símbolos religiosos assim continuaremos.

            Voltando para a sua questão, a alma jovem precisa de uma boa dose de liberdade do mesmo modo que a criança precisa de uma boa dose de liberdade. Porém, as instituições sábias, quando elas existirem, proverão essas almas da necessária proteção para que não cometam exageros que possam expor o seu bem estar, ou dos demais, a graves riscos. Aqui, como disse, a analogia com a proteção paternal amorosa pode ser aplicada.

 

 

VIVIANE: Sendo o nível físico o mais denso na manifestação universal, então a Terra está nesse nível?

 

ARNALDO: Muito embora o nível físico de fato pareça ser o nível mais denso da manifestação universal, isso não necessariamente se constitui em um problema. A Terra, enquanto planeta, possui, como no caso da nossa constituição humana, tanto uma parte física como partes suprafísicas. Portanto, não é a Terra enquanto planeta que se converte em qualquer problema; porém, a capacidade limitada dos nossos sentidos embotados e degenerados que faz com que percebamos de uma forma equivocada e superficial aquilo que chamamos de Terra.

            Os sábios nos dizem que o planeta Terra é uma coisa maravilhosa e que é a limitação dos nossos sentidos que vê a Terra de uma forma ilusória, que compõe uma imagem muito superficial e equivocada desse planeta. Porém, essa imagem é uma ilusão quando a dotamos de uma realidade absoluta, como na alegoria do dia sombrio e chuvoso. Mais acima, o Sol sempre está brilhando e a dualidade das formas, da sombra, só ocorre nos níveis mais densos. Porém, nós perdemos de vista essa consciência de que um pouco acima o Sol sempre brilha e que na grande maioria da manifestação universal é a Glória da Luz Divina que sempre está presente.

            Sob essas limitações, nós dotamos de uma realidade absoluta aquilo que nossas mentes imaturas e grosseiras percebem como imagens. Assim, pensamos: “eu sou homem, ela é mulher”. Isso é ilusão porque não existe “eu e você”. Existe “nós” – se quisermos assim chamar. Com essa noção nos aproximamos um pouco da verdade e da glória da Realidade Divina.

            Quando na maturidade da Alma, da Eva redimida, da Maria, a mãe do Divino dentro de nós, nossos sentidos se purificam, nossa mente se aquieta e acata a voz do mensageiro divino, então podemos refletir, podemos estar em sintonia com o Sol da Consciência Espiritual e, mais adiante, podemos despertar conscientemente para essa gloriosa realidade. Essa percepção propriamente espiritual transcende nossa mente concreta das dualidades, das imagens, da separatividade e, como na imagem flor do lótus, a flor da nossa Consciência se eleva do barro do mundo físico, atravessa as águas de nossa psique e se abre ao Sol perene do mundo espiritual.

            Esse nível é definido no Oriente como arupa (sem formas), onde as imagens concretas que nos separam de todos os demais são transcendidas. Nesse nível, o mínimo que podemos dizer é que existe sempre um “nós”; é como uma gloriosa e eterna sinfonia. Não há desvio da Glória Divina nesse nível, até porque nesse Reino de Deus há sempre tanta felicidade que ninguém quer sair dessa sintonia. Aqui, no nível de percepção em que a maioria de nós se encontra, perdemos essa consciência, essa visão. Nossos sentidos e nossa inteligência ficam curtos, por assim dizer.

            Como diz Sócrates, ou Platão, nós erramos por ignorância, não custa repetir. Como na Alegoria da Caverna, de Platão, nós olhamos para a sombra e achamos que a sombra é a realidade. O problema não é a Terra, nem o mundo físico. O problema é a nossa consciência limitada e apegada às limitadas imagens de nossa mente concreta: a Eva erra atraída pela maçã dos sentidos e da mente concreta, que é o Rei dos sentidos, o Rajá dos sentidos, como se diz na simbologia oriental.

 

 

 

            “Quem quiser ouvir a voz de Nâda (*), o Som Insonoro, e compreendê-la, tem de aprender a natureza de Dhâranâ (**).

            Tendo se tornado indiferente aos objetos de percepção, o discípulo deve buscar o rajah [rei] dos sentidos, o produtor de pensamentos, aquele que desperta a ilusão.

            A mente é o grande Assassino do Real.

            Que o Discípulo mate o Assassino.

                        NOTAS

(*) A Voz Insonora, ou a “Voz do Silêncio”. Literalmente talvez devesse ser lido “Voz no Som Espiritual”, pois Nâda é a palavra sânscrita equivalente ao termo do Senzar [linguagem sagrada dos Mistérios].

(**) Dhâranâ é a intensa e perfeita concentração da mente em algum objeto interior, acompanhada de abstração completa de tudo o que é pertinente ao universo externo, o mundo dos sentidos”. (A Voz do Silêncio, p. 45)
 

 

 

VIVIANE: Nesse ponto entra a interpretação do Budismo, como uma restauração do que há de melhor no Oriente?

 

ARNALDO: Sim. Por que o Budismo é tão importante? Porque sem a base filosófica do Senhor Buda acontece o que estamos vendo na religião do Ocidente. Como já explicamos, perdemos a verdadeira interpretação dos símbolos cristãos, materializamos – por meio de uma interpretação literal – a grandeza espiritual desses símbolos. Por isso é tão importante esse resgate realizado pelo Evangelho da Interpretação, de Kingsford e Maitland. Como citado em sua obra principal, The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), “Pois, embora a fé seja aquilo que salva, não é fé aquilo que não possui a compreensão”. (p. 269)

            A interpretação idólatra e literal das Escrituras cristãs se torna quase inevitável sem a base filosófica do Budismo, repito. Essa leitura materialista e historicista não é fé, mas sim idolatria e credulidade, pois está distante da compreensão, do entendimento. E isso não salva; isso mata, como podemos observar nas cruéis circunstâncias de nosso mundo e nas trágicas conseqüências que estão por vir.

 

 

VIVIANE: Como diz o ditado: fé cega, faca amolada. É a fé sem compreensão.

 

ARNALDO: Se a pessoa adere a uma crença sem um correto entendimento, dizemos que ela tem uma fé cega. Isso não é fé, mas sim credulidade. Nesse estado de cegueira espiritual, a pessoa se torna bruta, violenta, agressiva – chame-se ela de budista, hinduísta, cristã ou de outra religião.

 

VIVIANE: Por que você diz que, no Ocidente, não se pode perder o foco do Cristianismo?

 

ARNALDO: As pessoas com certo nível de maturidade espiritual, que por isso mesmo têm responsabilidade para com o povo dentro do qual se criaram e dentro do qual vivem, não devem abandonar a tradição religiosa da sua gente. Sua responsabilidade é procurar iluminar com a reta compreensão os símbolos religiosos que estão na mente do seu povo. No caso do Ocidente, essa base religiosa principal é o Cristianismo.

            Foi isso que a Dra. Kingsford e Maitland fizeram e nós faríamos bem em ponderar seriamente no exemplo que eles nos deixaram, antes de darmos as costas aos símbolos familiares às mentes de nosso povo e aderirmos irresponsavelmente a outras tradições.

            As grandes tradições religiosas aparentemente alheias ao Cristianismo – como é o caso do Budismo, na visão religiosa dominante – estão incluídas na base do verdadeiro Cristianismo, como afirma o Evangelho da Interpretação.

            Assim, ao conhecermos essas grandes tradições, devemos, em nosso país e no Ocidente em geral, sempre que for possível, iluminar os símbolos, as alegorias e as parábolas da tradição cristã. Primeiro porque essa é nossa responsabilidade para com nosso povo; segundo, porque, como já dissemos, a civilização ocidental dominou o mundo e o mundo precisa, com urgência, que o Ocidente recupere ou resgate a verdade de uma interpretação espiritual de suas Escrituras e, à luz dessas interpretações lúcidas, reforme suas principais instituições sociais.

            Sem isso seremos como aqueles orgulhosos engenheiros do Titanic, supondo que estamos imunes a qualquer catástrofe, mas continuaremos dirigindo o Titanic desse mundo rumo ao iceberg que se aproxima.

            Aqui é importante lembrarmos aquela análise feita por Platão em sua obra A República. Os amigos de Sócrates o questionaram sobre questões sutis como a Justiça, e ele respondeu que o entendimento das questões sociais se assemelha a algo escrito com grandes letras e que se não formos capazes de analisarmos de forma correta, de interpretarmos o significado dessas “grandes letras” das questões macro sociais que nos envolvem, que não há lógica em acreditarmos que seremos capazes de ler as “letras pequenas” das realidades supra-físicas, quer psíquicas, quer morais ou propriamente espirituais.

 

 

            “Sócrates – A busca que executamos não é de pouca importância, mas exige, em minha opinião, grande acuidade de espírito. Ora, dado que essa qualidade nos falta, dir-vos-ei como julgo que se deve proceder. Se se ordenasse a pessoas com visão pouco apurada que lessem de longe letras escritas em caracteres miúdos e uma delas descobrisse que essas mesmas letras se encontram escritas em outro lugar em grandes caracteres e num espaço maior, ninguém duvidaria de que seria mais fácil ler primeiro as letras grandes e examinar em seguida as miúdas, para ver se são de fato iguais.

            Adimanto – Certamente. Mas, Sócrates, que tem isso a ver com a investigação a respeito da natureza da justiça?

            Sócrates – Não é a justiça, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?

            Adimanto – Sim.

            Sócrates – E a cidade não é maior que o indivíduo?

            Adimanto – Claro.

            Sócrates – Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena”. (Platão, A República, p. 52)
 

 

            No caso da sua pergunta, uma análise correta das nossas principais instituições, ou seja, as principais instituições da civilização ocidental, quer pelo fato de que são elas que condicionam a mentalidade de nossos povos, quer pelo fato de que essa civilização é que está influenciando, rápida e avassaladoramente, a cultura e as instituições dos demais povos, isto é, dos povos do Oriente, então compreenderemos a urgência de iluminarmos, de resgatarmos as verdadeiras bases da religião que é a matriz da civilização ocidental.

            O senhor Krishnamurti também tem uma passagem muito elucidativa quanto a importância de uma boa compreensão da realidade externa a nós, da realidade que nos cerca. E esse é um último aspecto que gostaria de comentar em relação à sua pergunta. Esse aspecto diz respeito à ilusão de que encontraremos uma genuína elevação espiritual dando as costas à realidade sociocultural do povo dentro do qual vivemos.

            É uma ilusão acreditarmos que sem compreendermos essas situações externas a nós, a situação macro social que nos cerca (que são as “letras grandes”), e sem respondermos devidamente às responsabilidades que naturalmente advém pelo fato de compreendermos essas realidades – o que de imediato nos coloca como parte da elite pensante – é uma ilusão, portanto, pensarmos que se não respondermos devidamente, com equidade e justiça, a essa responsabilidade social ou, se quisermos usar a expressão oriental, a esse nosso Carma coletivo, que mergulhando diretamente em buscas internas, ditas espirituais, avançaremos por esse caminho rumo à verdadeira Luz. Estaremos, isso sim, indo a caminho de conflitos, de desequilíbrios e da infelicidade pessoal. Vejamos a passagem iluminadora de Krishnamurti:

 

            “Há apenas um movimento na vida, o externo e o interno; esse movimento é indivisível, embora esteja dividido. Estando dividido, a maioria segue o movimento externo do conhecimento, das idéias, crenças, autoridade, segurança, prosperidade, e assim por diante. Em reação a esse, segue-se a assim chamada vida interior, com suas visões, esperanças, segredos, conflitos, desesperos.

            Como esse movimento é uma reação, ele está em conflito com o externo. E, portanto, existe contradição, com suas dores, ansiedades e fugas.

            Há apenas um movimento, que é o externo e o interno. Com a compreensão do externo, o movimento interno tem início, não em oposição ou em contradição. E como o conflito foi eliminado, o cérebro, embora altamente sensitivo e alerta, torna-se quieto. Somente então o movimento interno tem validade e real significado.

            A partir desse movimento surge uma generosidade e uma compaixão que não são o produto do raciocínio e da autonegação intencional”. (Krishnamurti’s Notebook, p. 15)

 

            Em resumo, muitas pessoas da elite pensante dos povos ocidentais, ao perceberem as inconsistências, as fragilidades, os enormes problemas do Cristianismo, o renegam, buscando ou filosofias materialistas, ou tradições orientais de diversos tipos, ou ainda os exotismos esotéricos da chamada Nova Era. Elas não percebem a importância de auxiliarem os seus irmãos, não assumem essa responsabilidade compassiva e se iludem acreditando que encontrarão a iluminação espiritual dando as costas às necessidades de seus povos.

 

 

VIVIANE: E qual o problema de apresentar, no Ocidente, o Budismo diretamente, independente do Cristianismo?

 

ARNALDO: Em primeiro lugar, como dissemos, o Budismo está incompleto sem a mensagem do Cristo Jesus. Apenas para dar um exemplo disso, há discussão entre os próprios budistas se o Budismo é ou não uma religião. Ora, isso é impensável em relação ao Cristianismo e apenas esse fato já demonstra o quanto o Budismo necessita do Cristianismo para sua completude enquanto religião.

            Em segundo lugar, para a maioria dos que se dizem cristãos, que compõe a maior parte das populações do Ocidente, apresentar o Budismo diretamente, com sua linguagem e seus símbolos pouco familiares para a mente dos povos cristãos, é como falar em uma linguagem que as pessoas têm dificuldade de entender.

            Precisamos iluminar as pessoas com algo que elas estejam preparadas para receber; falar a linguagem com que elas estão acostumadas. Por exemplo, quem tem filho pequeno precisa entrar no mundo dele, daquela fase da vida. Quando crescer ele terá a vida dele, mas enquanto ele é criança os pais precisam falar em uma linguagem que ele entenda, entrar no mundo dele para poder ajudá-lo a crescer.

            Como dizia o senhor Krishnamurti, a religião é a base de qualquer civilização. E para melhorar a base de nossa civilização ocidental é necessário utilizar os símbolos que estão na mente das pessoas, que foram condicionadas, a ferro e fogo, por séculos e séculos, com muito temor e muito medo, e trabalhar esses símbolos. Precisamos resgatar esses símbolos e mostrar um caminho de Luz baseado em uma lúcida interpretação dos símbolos do Cristianismo. Quer pela nossa responsabilidade como cidadãos desses países, quer como cidadãos do mundo, preocupados com a situação mundial e o domínio avassalador do Ocidente.

            Também precisamos considerar, repito, qual a relevância dos povos cuja civilização tem em sua matriz principalmente o Budismo no mundo de hoje. Isso em termos de influência cultural internacional e de poder geopolítico. Como já afirmamos, a civilização ocidental está rapidamente influenciando os povos que têm suas bases em outras tradições religiosas. E também por essa razão se torna urgente concentrarmos os esforços sobre as bases, os fundamentos da civilização ocidental, enquanto ainda temos algum tempo de evitar ou minorar as catástrofes que se aproximam, devido às falhas e limitações inerentes aos valores e às grandes instituições sociais do Ocidente e que estão, repito, dominando todo o mundo.

VIVIANE: Você comentou que não adianta, no Ocidente, simplesmente falar do Budismo abandonando a base cristã ocidental. Mas explicou também que o Cristianismo sem o Budismo fica na credulidade. O que há, afinal, na filosofia do Budismo que ajuda a jogar luz sobre o Cristianismo?

 

ARNALDO: Já falei e tentei dar exemplos de que há muita coisa nos ensinamentos budistas que serve como necessária base de interpretação para os ensinamentos trazidos pelo Senhor Cristo Jesus. No entanto, essa pergunta exige um conhecimento tão vasto do Budismo e do Cristianismo, que não me sinto competente para responder com plena segurança. Assim, prefiro que leiamos uma ou outra passagem da literatura original da Dra. Kingsford e Maitland com referência a essa complementaridade entre os ensinamentos desses Seres Divinos e, depois, talvez me sinta confiante para tecer comentários adicionais.

            Antes disso, apenas gostaria de repetir a idéia que me parece clara, até onde minha limitada visão alcança, que o simples fato de reconhecermos que os ensinamentos desses Iluminados são necessariamente complementares, que eles fazem parte de um todo harmônico e que, portanto, dependem um do outro para sua completude, que esse reconhecimento já é algo tão importante e transformador em nossa época ainda regida pelos sectarismos e pelas idolatrias, que na mesma medida em que vamos reconhecendo essa verdade, vamos também podendo afastar de ambas as tradições decaídas a cegueira das deturpações materialistas e idólatras dos sacerdotalismos. Somente isso já é algo de extrema importância para o mundo de nossos dias.

            Então, vamos trazer para nossa análise passagens da literatura dos profetas pioneiros do Evangelho da Interpretação, passagens que possam nos esclarecer com maior segurança sobre o papel complementar do Budismo em relação ao Cristianismo, como você pergunta:

 

            “Pois o fato é que a doutrina de Buda, com suas Quatro Nobres Verdades, e seu Nobre Óctuplo Caminho, sua ilimitada compaixão em relação a toda a vida senciente, seu lógico ensinamento ético de desenvolvimento através da conquista de si mesmo e da autocultura, sua simples e não obstante profunda análise do sofrimento e da tristeza com o método da libertação desses (...), sua regeneração completa da mente, seus elevados códigos de moralidade e padrão de tolerância, paz e caridade – essa doutrina é a indispensável precursora e intérprete da doutrina de Cristo”. (A Verdade Viva no Cristianismo, p. 26)

 

            “... não fazia parte desse projeto [do Cristianismo original] fornecer, no que diz respeito à vida e doutrina religiosa, um sistema integral e completo, independentemente dos que o antecederam.

            (...) o Cristianismo, em sua concepção original, delegou a regeneração da Mente e do Corpo (...), ou o dualismo exterior do Microcosmo, a sistemas já existentes e amplamente conhecidos e praticados.

            Esses sistemas eram dois em número, ou melhor, eram como dois modos ou expressões do sistema uno, cujo estabelecimento constituiu a “Mensagem” que antecedeu o Cristianismo pelo período cíclico de seiscentos anos. Esse sistema era a Mensagem na qual os “Anjos” estiveram representados em Gautama Buda e Pitágoras.

            (...) suas relações com o sistema de Jesus, como seus necessários pioneiros e antecessores, encontram reconhecimento nos Evangelhos na alegoria da Transfiguração.

            Os personagens que aparecem nesse evento – Moisés e Elias – são correspondentes hebraicos de Buda e de Pitágoras. E eles são descritos como tendo sido vistos pelos três apóstolos nos quais são representadas, respectivamente, as funções distintamente exercidas por Pitágoras, por Buda e por Jesus; ou seja, Obras, Compreensão e Amor, ou Corpo, Mente e Coração.

(...)

            O Cristianismo, então, foi introduzido no mundo com uma relação especial com as grandes religiões do Oriente, e sob a mesma regência divina. E muito longe de ser concebido como um rival e suplantador do Budismo, ele era a direta e necessária continuação desse sistema. E os dois são apenas partes de um todo contínuo e harmonioso, no qual a parte que veio por último é somente o indispensável acréscimo e complemento da parte que veio anteriormente.

            Buda e Jesus são, portanto, necessários um ao outro. E no sistema integral assim completado Buda é a Mente e Jesus é o Coração; Buda é o geral, Jesus é o particular, Buda é o irmão do universo, Jesus é o irmão dos homens; Buda é a Filosofia, Jesus é a Religião; Buda é a Circunferência, Jesus é o Interno; Buda é o Sistema, Jesus é o ponto de Radiação; Buda é a Manifestação, Jesus é o Espírito; em síntese, Buda é o “Homem”, Jesus é a “Mulher”.

            Se não fosse por Buda, não poderia ter havido Jesus, nem teria ele sido suficiente para atender ao homem integral; pois o homem deve ter a Mente iluminada antes que as Afeições possam ser despertadas. Nem teria sido o Buda completo sem Jesus. Buda completou a regeneração da Mente; e por meio de sua doutrina e prática os homens são preparados para a graça que vem por meio de Jesus. Motivo pelo qual nenhum homem pode ser propriamente cristão, se não for também e primeiramente budista.

            Assim, as duas religiões constituem, respectivamente, o aspecto exterior e o aspecto interior do mesmo Evangelho, os alicerces estando no Budismo – incluindo nesse termo o Pitagorismo – e a iluminação estando no Cristianismo. E da mesma forma que sem o Cristianismo o Budismo está incompleto, assim também o Cristianismo sem o Budismo é ininteligível.

            (...) da união espiritual na fé una do Buda e do Cristo nascerá a redenção vindoura do mundo.

            (...) Aqueles que buscam casar Buda a Jesus são do celestial e superior; e aqueles que se interpõem ou se objetam ao casamento são do astral e do inferior”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), p. 249-256]

 

            É importante salientar que embora as citações acima sejam um pouco longas, elas nos dão apenas uma idéia global do grande e harmonioso todo formado pela união católica desses ensinamentos. Há, na universalidade dessa religião cristã-budista, Mistérios que nem sequer estão mencionados aqui, mas que pertencem a esse todo harmônico. Não fosse assim, essa não seria uma religião capaz de abraçar todo o universo da família humana, com suas diferentes correntes e perspectivas religiosas.

            Para efeito de nossa exposição, que pretende ser apenas uma introdução a esses Mistérios e, assim sendo, é uma primeira aproximação a um vasto panorama, o que importa é deixar claro que o Budismo diz respeito, sobretudo, aos ensinamentos doutrinários (em conjunto com o Pitagorismo), e que esses, por meio de suas lúcidas doutrinas, nos permitem uma interpretação segura dos Mistérios de Jesus, desde que sejam afastados dessas doutrinas os acréscimos idólatras e sectários.

            Em síntese, a Roda e a Cruz compõem, unidas, um grande símbolo que pode abranger as necessidades espirituais de praticamente toda a família humana, desde que, repetimos, possamos nos concentrar no resgate de suas purezas essenciais, nos afastando do literalismo idólatra que tem sido impingido às populações pelo sacerdotalismo.

 

 

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