A FALECIDA DRA The Late Mrs. Anna Kingsford, M.D. – Helena Petrovna Blavatsky

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1. IDÉIAS INICIAIS

 

            “É verdade que é ‘a fé que salva’, mas a fé que não tem a compreensão não é fé, mas sim credulidade”. [The Story of Anna Kingsford and Edward Maitland and of The New Gospel of Interpretation (A História de Anna Kingsford e Edward Maitland e do Novo Evangelho da Interpretação), p. 11]

 

 

VIVIANE: Por que fazer um trabalho sobre o Cristianismo Budista?

 

ARNALDO: É importante deixar claro, desde o início de nossas conversas, que procurarei responder às questões levantadas nestes diálogos baseado  na mensagem da Dra. Anna Kingsford e de Edward Maitland. Esta mensagem foi chamada de Evangelho da Interpretação, e está contida em seus principais escritos.

            Penso que eles foram – e ainda são – verdadeiros profetas, almas iluminadas, servidores dos Seres Divinos, dos Servos Conscientes de Deus, ou seja, são profetas dos Seres Divinos, os quais são como os pastores (para usar a expressão da Bíblia) de nossa humanidade.

            O Cristianismo Budista surge como uma parte – talvez uma das partes mais importantes – de um resgate do Evangelho da Interpretação e, portanto, como uma continuidade da obra desses profetas.

            Acredito que – especialmente nesse momento de globalização e de prenúncio de crises sem precedentes – é necessário que seja feito esse resgate no panorama das idéias que regem o mundo, talvez mais do que qualquer outra coisa. Isto é, penso que nessa época o mundo necessita do regate da religião realmente católica, universal. E, do mesmo modo, acredito que essa religião seja o Cristianismo Budista.

 

 

            “A fé cristã é a herdeira direta da velha fé romana. Roma foi a herdeira da Grécia, e a Grécia do Egito, de onde se originaram o legado de Moisés e o ritual hebraico.

            O Egito foi apenas o foco de uma luz cuja verdadeira fonte e centro era o Oriente em geral – Ex Oriente Lux. Pois o Oriente, em todos os sentidos, geograficamente, astronomicamente e espiritualmente, é sempre a fonte de luz.

            Mas, embora originalmente derivada do Oriente, a Igreja de nossos dias e de nosso país é modelada diretamente a partir da mitologia greco-romana, e de lá retira todos os seus ritos, doutrinas, cerimônias, sacramentos e festivais.

            Portanto, a exposição que será feita sobre o Cristianismo Esotérico tratará mais especificamente dos mistérios do Ocidente, uma vez que suas idéias e sua terminologia são para nós mais atrativas e próximas do que as concepções não artísticas, a metafísica não familiar, o espiritualismo melancólico e a linguagem pouco sugestiva do Oriente.

            Extraindo sua essência-vital diretamente da fé pagã do velho mundo Ocidental, o Cristianismo mais proximamente se parece com seus pai e mãe imediatos, do que com seus ancestrais remotos, e será, então, melhor exposto com referência a suas fontes da Grécia e de Roma, do que com referência a seus paralelos bramânicos e védicos.

            A Igreja cristã é católica, ou então ela não é nada que mereça, em absoluto, o nome de Igreja. Pois católico significa universal, todo-abarcante: – a fé que sempre e em todos os lugares foi recebida. A prevalecente visão limitada desse termo é errada e prejudicial.

             A Igreja cristã foi inicialmente chamada de católica porque ela abarcava, compreendia e tornou seu o passado religioso de todo o mundo. Reunindo em sua figura central – do Cristo – e em torno dessa figura todas as características, lendas e símbolos até então pertencentes às figuras centrais das dispensações anteriores, proclamando a unidade de toda aspiração humana, e formulando em um grande sistema ecumênico as doutrinas do Oriente e do Ocidente.

            Assim, a Igreja católica é védica, budista, zend-avesta e semítica. Ela é egípcia, hermética, pitagórica e platônica. Ela é escandinava, mexicana e druídica. Ela é grega e romana. Ela é científica, filosófica e espiritual.

            Encontramos em seus ensinamentos o panteísmo do Oriente, e o individualismo do Ocidente. Ela fala a língua e pensa os pensamentos de todos os filhos dos homens; e em seu templo todos os deuses estão em um lugar sagrado.

            Eu sou vedantina, budista, helenista, hermética e cristã, porque eu sou católica. Pois nessa única palavra todo o Passado, Presente e Futuro estão abarcados.

            Como Santo Agostinho e outros dos Padres (Pais) da Igreja verdadeiramente declararam, o Cristianismo não contém nada de novo a não ser o seu nome, estando próximo dos antigos desde o seu início. E as várias seitas, que retém apenas uma porção da doutrina católica, são apenas como cópias incompletas de um livro, do qual capítulos inteiros foram retirados, ou como representações de uma peça teatral na qual apenas alguns de seus personagens e de suas cenas foram mantidos”. [The Credo of Christendom (O Credo do Cristianismo), pp. 94-96]
 

 

VIVIANE: O que é o Cristianismo Budista? Você o chamaria de um novo movimento, ou é uma nova religião?

 

ARNALDO: O Cristianismo Budista é uma religião, mas não é propriamente nova. Veja que a expressão “A Roda e a Cruz” alude à fusão do Budismo com o Cristianismo. Contudo, na verdade, não estamos fazendo essa fusão, nem tampouco a Dra. Kingsford e Maitland, porque essa fusão sempre existiu. Estamos apenas resgatando essa verdade que estava praticamente perdida ou esquecida.

            O Cristianismo Budista é ainda pouco conhecido nesse momento do início do século 21, do mesmo modo que o Evangelho da Interpretação, que também é referido como o Novo Evangelho da Interpretação. De forma análoga ao Cristianismo Budista, o Novo Evangelho da Interpretação não é algo novo, porém apenas o resgate de algo antigo, que foi deturpado e praticamente esquecido. Assim, a palavra “novo” é usada para definir algo que foi tão deturpado e relegado que o seu resgate chega a parecer algo novo.

 

 

VIVIANE: Qual o diferencial dessa religião?

 

ARNALDO: O seu diferencial está, de um lado, no fato de que a mensagem da Dra. Anna Kingsford e de Edward Maitland está mais voltada para a interpretação, para a abertura, por assim dizer, das Bíblias do Ocidente. Ocidente que, como vemos, está influenciando de forma avassaladora o mundo todo.

            De outro lado, está no pioneirismo e na qualidade – na profundidade e veracidade – da mensagem deixada por esses dois profetas. Isto é, pela grandeza de suas almas, que se expressou na pureza, na compaixão e no sacrifício de suas vidas. Vidas dedicadas ao soerguimento e ao amparo de seus irmãos, incluindo aqui os animais, e que, por essa razão, lhes permitiu uma grande fidelidade na veiculação de uma mensagem tão importante.

 

 

VIVIANE: Qual sua importância nos dias de hoje?

 

ARNALDO: Sua importância continua de crucial relevância. Talvez seja ainda mais decisiva e urgente hoje (início do século 21), do que no final do século 19, ou durante o século 20. Isso porque os problemas mundiais hoje se agravaram muito. E se for verdade, como penso poder demonstrar, que a raiz de nossos grandes problemas está nos errôneos fundamentos filosófico-religiosos de nossa época – os quais se refletem em leis e instituições, ou sistemas sócio-políticos viciados e incompetentes – então, sua importância é, de fato, ainda maior, mais crucial e mais urgente hoje do que era cerca de um século atrás.

            Não é fácil para a maioria das pessoas alcançar uma visão clara dessas amplas questões, mas isso em nada muda o fato de que elas sejam de fundamental importância para o futuro da humanidade.

            Certa vez ouvi o Sr. Krishnamurti – outro grande profeta de nossa época – afirmar que toda civilização tem por fundamento uma religião. Penso que o Sr. Krishnamurti se referia ao conjunto composto pelas Escrituras, suas interpretações, suas organizações, seus ritos e tradições culturais, tudo isso acrescido de uma parte pouco visível, mas que é, de longe, a parte mais importante, que é a parte mística ou esotérica dessa religião.

            Essa importância da religião na base da civilização é algo universal. Vale para o Ocidente e para o Oriente. Vemos o exemplo da civilização egípcia, com seus milênios de duração, que teve como base, inquestionavelmente, uma matriz filosófico-religiosa. Ou da civilização indiana, com seus vários milênios de existência, e que ainda está lá – embora rapidamente declinando diante do poder avassalador da civilização do Ocidente. Essa civilização com sua grande cultura, com suas castas, seus templos, sua Yoga, seus ashramas (centros espirituais), sua astrologia, sua medicina, suas artes – com seus aspectos gloriosos e seus aspectos degenerados – tem suas bases no Hinduísmo. Um Hinduísmo com suas próprias grandes “Bíblias”. As “Bíblias” dos Vedas, dos Upanixades, do Mahabharata – onde encontramos o Bhagavad Gita, (a Sublime Canção) – do Ramayana, e assim por diante. Todas as grandes civilizações do passado e do presente se enquadram nessa regra de terem como base uma matriz filosófico-religiosa.

 

 

VIVIANE: Mas não poderia a civilização ter sua base na filosofia científica contemporânea?

 

ARNALDO: De fato, essa questão é muito pertinente. Por que não uma base filosófico-científica? Até onde posso ver, nossa ciência comum, da qual nossa humanidade tanto se orgulha, como se fosse uma maravilha, ainda apresenta tremendas fragilidades e limitações e, em nossos dias, ainda é completamente incapaz de bem conduzir a humanidade. Ela, de fato, como veremos ao longo do nosso trabalho, está conduzindo a humanidade, junto com o sacerdotalismo religioso, porém, no rumo das catástrofes.

            Aqui eu lembraria da frase de Teilhard de Chardin: “tudo o que se eleva converge”. No dia em que a ciência comum, que a Dra. Kingsford chama de “Nesciência”, isto é, ciência néscia, no dia em que ela estiver em condições de ser o alicerce de uma verdadeira civilização, nesse dia ela terá se ampliado e se elevado, terá convergido para o encontro com a filosofia e a religião verdadeiras.

            Isso porque as coisas mais profundas, por sua própria natureza, somente podem ser realmente vivenciadas e conhecidas pelo caminho interno, do Silêncio, do Amor e do Espírito, e não meramente das faculdades, dos poderes e das tecnicalidades externas ao Espírito, como, principalmente, o pensamento concreto.

            Algum dia a ciência alcançará o nível de verdadeira ciência, de gnose, ou conhecimento que alcança o espírito, o profundo, e não apenas o superficial. Nesse dia o método científico terá sido ampliado e terá se libertado das limitações, da camisa de força da metodologia científica atual. Na atualidade, contudo, somente o conhecimento filosófico-religioso alcança a profundidade suficiente para ser a base de toda uma civilização. A ciência de nossos dias ainda deve ser uma coadjuvante, pois ainda não está pronta para representar bem esse papel principal.

            Uma vez alcançada essa dimensão mística, esotérica ou transcendental (que transcende a mente concreta) há uma realidade viva, há o trabalho, ou o Divino Sacrifício, de um grupo de Servidores do Divino, que são o verdadeiro coração, o verdadeiro sangue, ou vida, de uma verdadeira religião e de uma verdadeira filosofia. Pode não ser fácil ver essa questão com clareza, mas, para mim, esse é o panorama percebido.

            Se, portanto, as instituições de uma civilização são injustas, cruéis, incompetentes e incapazes de resolver e harmonizar os seus grandes problemas sócio-ambientais – como é bem o caso em nossa época – então, fica claro que a base de tudo isso é a falsidade, a deturpação filosófico-religiosa dominante nessa mesma época. Isso é um fato puro e simples. Muitos podem não perceber, podem não alcançar essa compreensão, mas isso em nada muda a situação. A nossa ignorância é apenas mais um elemento do panorama, um elemento que não muda seus determinantes fundamentais.

            Penso que tudo isso ficará mais claro à medida que formos aprofundando e detalhando aspectos mais concretos e pontos mais específicos. Mas o panorama geral é esse, sem tirar nem acrescentar. E, repetindo, em face desse panorama, a importância do Evangelho da Interpretação é crucial para o mundo como um todo. E é tanto mais crucial quanto mais dominantes estão se tornando, no mundo todo, as instituições, as idéias e os valores da cultura do Ocidente, uma vez que, como já disse, o Evangelho da Interpretação está principalmente voltado para a interpretação das bíblias do Ocidente.

            Vou dar apenas um exemplo, nesse início de nossos trabalhos. Esse exemplo é o caso da grande nação que é a Índia. Esse exemplo pode servir de “tipo ideal”, como diria Max Weber, para a visualização desse ponto.

            A Índia lutou bravamente para se tornar uma nação independente do domínio britânico. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, conseguiu essa importante e tão almejada independência, apesar do desastre que foi a partição do Paquistão – já um fruto da cegueira filosófica e política de seus líderes.

            Contudo, ao alcançar, com tantos heroísmos, dificuldades e tragédias essa independência, de onde foi copiar as suas instituições dominantes, aquelas que disciplinam a vida da nação como um todo? Justamente da Inglaterra! Copiou a injusta, incompetente e, portanto, trágica democracia liberal inglesa. Ou seja, continuou “colônia”, em termos filosóficos, das principais idéias sócio-políticas do Ocidente.

            A Índia nunca resolverá seus imensos problemas enquanto não acordar para isso, assim como o mundo nunca resolverá seus gigantescos problemas enquanto não acordar para isso.

            Esse exemplo visa apenas, como um “tipo ideal”, evidenciar a dominância do Ocidente, de suas idéias e instituições, mais do que seus exércitos e suas economias.

            E, ao evidenciar isso, esse exemplo ressalta a importância crucial, decisiva, do Evangelho da Interpretação, pois ele traz a “abertura” das Escrituras Sagradas do Ocidente, da tradição religiosa que está na base da civilização que está dominando o mundo, e, assim, gerando suas principais instituições e seus principais problemas.

 

 

VIVIANE: Mas, qual a razão de tratar o Cristianismo e o Budismo como uma coisa só?

 

ARNALDO: Eu sempre via – como quase todas as pessoas até esse momento – o Budismo como uma coisa separada do Cristianismo, como caminhos diferentes, um mais voltado para o Oriente, e o outro mais para o Ocidente.

            Por todos os meus estudos de Filosofia Hermética, ou Esotérica, eu já sabia muito bem que eles diziam, em essência, praticamente a mesma coisa, apenas com outras palavras, para diferentes culturas.

 

 

            “(...) tanto o Budismo quanto o Cristianismo, como apresentados por seus inspirados fundadores, fazem da fraternidade a essência da doutrina e da vida”. (A Chave para a Teosofia, p. 29)

 

 

            “Uma vez erguido o véu do simbolismo da face divina da Verdade, todas as Igrejas são similares, e a doutrina básica de todas é idêntica (...). Grega, Hermética, Budista, Vedantina, Cristã – todas essas Lojas dos Mistérios são essencialmente unas e são idênticas em doutrina”. [Life of Anna Kingsford (Vida de Anna Kingsford), vol. II, pp. 123-124]
 

 

            No entanto, ao ler as obras da Dra. Kingsford e Maitland, me deparei com uma informação que para mim foi nova e que logo percebi ser uma informação simplesmente importantíssima: que o Budismo e o Cristianismo não são, na verdade, duas coisas separadas. Que o mundo, em sua ignorância, fez deles duas coisas separadas, mas que, na realidade, eles são uma coisa só, e que somente assim adquirem suas verdadeiras feições.

 

 

VIVIANE: Você quer dizer que Buda e Jesus fizeram trabalhos complementares, um sabendo que estava atuando em conjunto com o outro?

 

ARNALDO: Sim. O senhor Buda, quando veio e realizou seu trabalho – tenho grande convicção nisso – já sabia que sua missão de reforma da religião que existia naquela época, na parte do mundo em que ele viveu, que era a Índia, cuja religião principal era e é o Hinduísmo, que essa obra, por si só gigantesca, era apenas uma parte de uma obra maior.

            O Hinduísmo já era uma religião multimilenar e, também, havia uma civilização multimilenar fundamentada nessa religião. E o senhor Buda fez um trabalho de reforma daquela estrutura religiosa já carcomida, degenerada.

            Contudo, com base nos escritos do Evangelho da Interpretação, hoje tenho convicção que ele já sabia – aí está a idéia que eu achei realmente revolucionária e importantíssima – que depois viria outro Avatar, que complementaria a sua obra, tornando-a realmente católica (universal): o Cristo Jesus.

            Da mesma forma, o senhor Jesus Cristo, quando fez seu trabalho, não partiu do zero. Ele trabalhou em cima da tradição judaica, da tradição ocidental (os Mistérios do Egito, da Grécia e de Roma, incluindo aqui o Pitagorianismo), e da obra que já tinha sido legada pelo senhor Gautama, a qual incorpora e regenera toda a tradição do Oriente. Ele deu continuidade a tudo o que já estava posto.

            A vida real do Cristo Jesus é pouco conhecida. Nós temos o que os Evangelhos nos relatam, mais algumas Cartas dos Apóstolos, mas muito do que acreditamos saber na verdade não sabemos, porque quase todas aquelas histórias são alegorias que não dizem respeito ao que tenha sido a verdade histórica.

            Não que seja muito importante, no contexto da religiosidade, saber a verdade histórica, pois isso não tem grande importância: – as alegorias, as parábolas e os conhecimentos simbólicos que nos passam são muito mais importantes. Eles são atemporais, dizem respeito à Alma e falam para a Alma, ao passo que os eventos históricos são temporais, referentes àquela época, àquela cultura.

 

 

            “O Cristianismo, então, foi introduzido no mundo com uma relação especial com as grandes religiões do Oriente, e sob a mesma regência divina. E muito longe de ser concebido como um rival e suplantador do Budismo, ele era a direta e necessária continuação desse sistema. E os dois são apenas partes de um todo contínuo e harmonioso, no qual a parte que veio por último é somente o indispensável acréscimo e complemento da parte que veio anteriormente”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), pp. 250-251]
 

 

            Temos, hoje, como informação muito provável, que Jesus viveu muito tempo em comunidades essênias – e esse grupo tinha uma forte influência budista. Eles tinham essa ligação viva com o Budismo. Com o passar do tempo essa ligação se perdeu por causa do materialismo, da ignorância do mundo. Nem os budistas quiseram saber muito disso, nem os que continuaram a tradição cristã, com graves conseqüências para ambos.

 

 

VIVIANE: Qual é a situação hoje do Budismo e do Cristianismo?

 

ARNALDO: É uma situação deplorável. São duas tradições que nunca deveriam ter sido separadas – era para terem sido sempre como uma continuação da mesma tradição religiosa católica, universal, personificada nos Evangelhos pela figura do Cristo Jesus – e foi a degeneração de ambas que acarretou essa separação, que não permitiu a manutenção do claro conhecimento de que elas, na realidade, compõem uma única grande corrente religiosa.

 

 

            “Agora, uma das mais deploráveis características do Sacerdotalismo é sua habitual intolerância a todas as outras formas de fé e sistemas religiosos, a despeito de sua antiguidade, autenticidade, semelhanças fundamentais e credibilidade.

            O Sacerdotalismo não os vê como amigos, mas como rivais e inimigos; que não devem ser entendidos, apreciados e – ao menos em parte – assimilados, mas que devem ser ignorados, depreciados e contestados.

            Essa atitude é justificada pelo Sacerdotalismo como sendo zelo por seus próprios princípios particulares, mas isso, na verdade, não é nada mais que intolerância nascida da ignorância”. (A Verdade Viva no Cristianismo, p.26 )
 

 

 

VIVIANE: Há citações de Jesus referentes ao Budismo, ao Gautama?

 

ARNALDO: Não acredito que haja citações explícitas nisso que se tem como sendo do Cristo Jesus, ou seja, nos Evangelhos, nas Cartas, nas Parábolas e no Apocalipse. Mas há referências alegóricas, como quando Jesus Cristo fala: “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco; a essas também me importa conduzir, e elas ouvirão a minha voz; e haverá um rebanho e um pastor” (João 10:14-16).

 

 

            “Esses sistemas eram dois em número, ou melhor, eram como dois modos ou expressões do sistema uno, cujo estabelecimento constituiu a “Mensagem” que antecedeu o Cristianismo pelo período cíclico de seiscentos anos. Esse sistema era a Mensagem na qual os “Anjos” estiveram representados em Gautama Buda e Pitágoras.

            No caso desses dois profetas e redentores, praticamente contemporâneos, o sistema era, tanto na sua doutrina quanto na sua prática, essencialmente um e o mesmo. E suas relações com o sistema de Jesus, como seus necessários pioneiros e antecessores, encontram reconhecimento nos Evangelhos na alegoria da Transfiguração.

            Os personagens que aparecem nesse evento – Moisés e Elias – são correspondentes hebraicos de Buda e de Pitágoras. E eles são descritos como tendo sido vistos pelos três apóstolos nos quais são representadas, respectivamente, as funções distintamente exercidas por Pitágoras, por Buda e por Jesus; ou seja, Obras, Compreensão e Amor, ou Corpo, Mente e Coração.

            E pela sua reunião no Monte está representada a união dos três elementos, e a complementação de todo o sistema abrangido pelos três por Jesus, como o representante do Coração ou daquilo que é Mais Interno, e, em um sentido especial, como o “amado Filho de Deus”.

            O Cristianismo, então, foi introduzido no mundo com uma relação especial com as grandes religiões do Oriente, e sob a mesma regência divina. E muito longe de ser concebido como um rival e suplantador do Budismo, ele era a direta e necessária continuação desse sistema. E os dois são apenas partes de um todo contínuo e harmonioso, no qual a parte que veio por último é somente o indispensável acréscimo e complemento da parte que veio anteriormente”. [The Perfect Way; or, the Finding of Christ (O Caminho Perfeito; ou, a Descoberta de Cristo), pp. 250-251]
 

 

 

VIVIANE: Se Buda já sabia que Jesus viria, parece compreensível que Ele, naquele momento, não dissesse: “esperem que vem outro instrutor”. Mas Jesus, chegando séculos depois, poderia fazer referências ao Buda Gautama. Ele não fez ou teria feito e se perdeu?

 

ARNALDO: Segundo o Evangelho da Interpretação, Ele fez essas referências, mesmo que para o público apenas de forma alegórica (Mateus, 13:34), mas a interpretação verdadeira da alegoria se perdeu. Podemos ver algo assim no caso do longo período em que Jesus esteve entre os essênios, onde essa ligação com o Budismo era evidente, como, por exemplo, na questão da irmandade com os animais e, em conseqüência, o vegetarianismo, que era rigorosamente seguido pelos essênios. Tudo isso praticamente se perdeu por muitos séculos, e só recentemente foi resgatado.

 

 

VIVIANE: Que provas existem dessa ligação de Jesus com os essênios? Hoje essa informação é tida como certa?

 

ARNALDO: Até onde conheço, essa relação é hoje, até mesmo cientificamente, considerada como algo praticamente certo. Tornou-se um conhecimento mais sólido com as descobertas dos manuscritos do Mar Morto (Qumran) e do Alto Egito (Nag Hammadi). Descobriram muitos papiros no século passado que relatam um personagem, um líder citado como Mestre de Justiça. Acredita-se que esses papiros estejam se referindo a Jesus.

 

 

            “(...) nossa fonte, Fílon, afirma que os terapeutas e os essênios eram dois grupos com uma única orientação. (...)

            Os terapeutas certamente mantinham relações com os essênios. (...) Jesus fez sua aparição pública entre a comunidade de Qumran e entre os batistas – ou seja, entre seitas judaicas obviamente ligadas aos essênios. (...)

            A semelhança entre os ideais essênicos e budistas é tão evidente que hoje existe um grande número de livros dedicados a analisar como o pensamento budista chegou até os judeus essênios. A acreditarmos na afirmação de Fílon, ele deve ter chegado através dos terapeutas. (...)

            Hoje, depois que os textos da comunidade de Qumran foram em grande parte elucidados, muitos pesquisadores acreditam que os habitantes de Qumran eram essênios. (...)

            Sabemos que Jesus fez sua aparição entre o povo de Qumran e que obviamente existe alguma ligação entre essa comunidade, os essênios, e os terapeutas. (...)

            Nessas descrições, reconhecemos algumas semelhanças – mas também diferenças – com os terapeutas. O curioso é que os essênios tinham muitos costumes e atitudes diante da vida, em comum com os budistas, o que explica as muitas comparações estabelecidas entre os dois grupos”. (O Buda Jesus: As Fontes Budistas do Cristianismo, pp. 269-274)

 

 

            Para termos uma melhor noção do quanto essa relação de Jesus com os essênios é considerada provável, bastaria citar uma recente referência feita pelo Papa Bento XVI que, além de ser um erudito nessas questões, também é conhecido como bastante conservador em termos doutrinários.

 

 

Surpreendente Homilia com Novas Hipóteses Históricas sobre a Páscoa

(Bento XVI durante a missa na Ceia do Senhor, que presidiu na Basílica de São João de Latrão, catedral da diocese de Roma, na tarde da Quinta-Feira Santa.)

 

CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 5 de abril de 2007

            Foi uma homilia surpreendente, na qual o Papa teólogo harmonizou momentos de meditação com as últimas investigações históricas realizadas sobre os manuscritos de Qumran, encontrados no Mar Morto em 1947, que ainda hoje são matéria de estudo e que oferecem novas hipóteses sobre a Páscoa.

            Seu objetivo era mostrar a novidade introduzida pela Páscoa de Cristo na Páscoa judaica, na qual se imolava um cordeiro em recordação da libertação do povo escolhido da escravidão do Egito.

            Com toda probabilidade, Jesus seguia o calendário que os essênios de Qumran observavam, seita rigorosa judaica em oposição ao poder sacerdotal de Jerusalém, que ainda em alguns aspectos continua sendo misteriosa para os historiadores, explicou o Santo Padre.

            Segundo esta interpretação, “ainda não aceita por todos”, como ele mesmo declarou, Jesus “celebrou a Páscoa com seus discípulos provavelmente segundo o calendário de Qumran, ou seja, “ao menos um dia antes” da tradicional festa da Páscoa, “na hora da imolação dos cordeiros”, como diz o evangelho de São João, algo que parecia contradizer a narração dos outros três evangelistas.

            O cardeal Albert Vanhoye SJ, antigo reitor do Instituto Bíblico Pontifício de Roma, explicou que na época de Jesus, o calendário essênio era mais tradicional que o mais recente adotado pelos sacerdotes de Jerusalém, ainda que isso não signifique que Jesus fazia parte dos essênios.

            Isso implica, acrescentou Bento XVI, que Jesus celebrou a Páscoa “sem cordeiro, como a comunidade de Qumran, que não reconhecia o templo de Herodes e estava à espera do novo templo”. (Site Zenit – O Mundo Visto de Roma, 05/04/2007).

 

 

            Mesmo que não tenhamos uma plena comprovação científica, há muitas informações que vêm da tradição mística, que aparecem em textos de vários autores.

            Quando a Dra. Anna Kingsford, por exemplo, diz que estava com Jesus naquela vida na Palestina evidentemente não é uma informação corroborada pela ciência contemporânea. É uma informação mística e você vai aceitar ou não por uma série de outras inferências que fará da vida dessa pessoa, se as outras coisas que ela falou fazem sentido, ou não fazem, se o contexto da obra dessa pessoa é relevante, ou não. Quando você conclui que é relevante, percebe que ela não teria porque dizer uma falsidade em um assunto tão sério. Então você aceita aquela informação, pelo menos como uma forte hipótese.

 

 

            “A verdade sobre o nascimento de Jesus me é mostrada. Foi com toda certeza um nascimento comum. Vejo isso muito claramente. Os nomes estão todos alterados. O nome de nascimento de Jesus não é Jesus nem algo parecido. Nada é real como eu tinha pensado. Muito pouco acontece da forma que foi relatado. O episódio em que se perde e é encontrado no templo, e a alimentação dos cinco mil são alegorias cuja significação é espiritual. Os milagres do reavivamento da filha do dirigente e do filho da viúva são fatos reais”. (Clothed with the Sun (Vestida com o Sol), p. 84)

 

            “Hoje pela manhã, entre o sono e o despertar, eu me vi junto a várias pessoas, caminhando com Jesus nos campos em volta de Jerusalém”. (Clothed with the Sun (Vestida com o Sol), p. 87)

 

 

            Nesse mundo das religiões, os Mestres dizem que essa questão da cientificidade convencional deve ficar em segundo plano. Entre outras razões, pela própria limitação do método científico. Quando falamos de algo com uma fundamentação mística estamos nos referindo a uma experiência de natureza interna, de natureza mística.

            A palavra “místico” vem do radical que aparece em várias línguas, como no francês muet, em português mudo, em inglês mute – que significa sem fala, ou de lábios fechados, que guarda o silêncio, que não fala. Ou seja, esta é uma realidade que você acessa não pelo conhecimento discursivo – que é cientificamente chamado de epistemológico, o que pode ser escrito, que pode ser passado intelectualmente – que é um componente essencial do método científico contemporâneo. Estamos falando de uma coisa que começa quando você, alegoricamente, fecha os lábios.

 

 

VIVIANE: Vem pelo sentir.

 

ARNALDO: Por um “supersentir”. O sentir comum ainda está preso aos nossos sentidos. As tradições místicas nos afirmam que temos dentro de nós faculdades latentes que são como “supersentidos”, e que essas faculdades, quando são despertadas, atualizadas, nos abrem as portas do céu, no sentido alegórico dessa palavra.

            Estamos começando a falar de coisas que a ciência moderna não alcança – refiro-me à ciência convencional, acadêmica, que a sociedade conhece e preza, não a Ciência com “C” maiúsculo que quer dizer verdadeiro conhecimento ou Gnose. Essa ciência do mundo, das academias, é limitada, uma ciência com “c” minúsculo, por assim dizer. Quando você fala em verdadeira Ciência abre suas portas e janelas mentais para conhecimentos mais profundos e mais abrangentes.

            O mesmo acontece com as religiões do mundo: geralmente não são verdadeiras religiões. Também ocorre com a filosofia, que hoje é, no geral, mera disciplina acadêmica. A palavra filosofia significa amante da sabedoria, amigo da Sophia, da Sabedoria.

 

 

            Livro da Sabedoria 6:

12.       Resplandecente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente.

13.       Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam.

14.       Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta.

15.       Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado.

16.       Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos,

17.       porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

18.       Mas amá-la é obedecer às suas leis, e obedecer às suas leis é a garantia da imortalidade.

19.       Ora, a imortalidade faz habitar junto de Deus;

20.       assim o desejo da Sabedoria conduz ao Reino!

 

 

            Quando você se aprofunda nesses temas considerando tanto a Religião – religare – quanto a Ciência – gnose – quanto a Filosofia – amor pela sophia – percebe que elas, em sua essência, estão centralmente baseadas no conhecimento interno, místico.

            Para chegar nesse estágio tem que se elevar. Como dizia o filósofo e teólogo francês Theilard de Chardin, “tout ce qui s´elève, converge” – tudo que se eleva converge. Se você ficar na periferia, parecem coisas separadas: ciência é uma coisa, filosofia é outra, religião é outra. Quando você se elevar, se aprofundar, até a vivência do espiritual essas coisas convergem como os raios em relação ao Sol.

            No que diz respeito a esses temas de religião que estamos tratando, a prova na qual eles realmente se sustentam, se alicerçam, se embasam, é a experiência interna, mística – não uma comprovação histórica, que é cheia de controvérsias. Nesses assuntos, o que importa é se isso tem uma experiência interna relevante, de preferência uma experiência comum a vários profetas e místicos, de diferentes épocas e lugares.

 

 

VIVIANE: É mais ou menos como quando a gente escuta alguma coisa e parece que algo dentro de nós concorda com aquilo, como se houvesse uma ressonância interna?

 

ARNALDO: É isso e também muito mais do que isso. É quando a pessoa sente e, dependendo da pessoa, vive e se transforma naquilo. Quando nos dedicamos a esses estudos vamos nos conhecendo e, em alguma medida, vivenciando essas faculdades que existem dentro de nós.

            Em toda a vasta ciência do misticismo (Religião, Yoga etc.) sabemos que é possível desenvolver faculdades que nos permitam vivenciar esse conhecimento, seja no sentido mais superficial, de começarmos a ver coisas, ouvir coisas, seja no sentido mais elevado, da pessoa ir se transformando no próprio objeto do conhecimento.

            O conhecimento verdadeiramente espiritual você alcança por fusão. Você se transforma na coisa porque transcende essa dualidade de sujeito e objeto – e se torna o objeto do conhecimento. Você e o objeto do conhecimento se tornam uma coisa só, se fundem.

            Essa é a tradição mística de todos os tempos, de todas as eras.

 

 

VIVIANE: E qual o objetivo do livro – mostrar o conhecimento ou ajudar a pessoa a chegar nesse ponto de sentir?

 

ARNALDO: O objetivo principal do livro é resgatar a realidade religiosa que existe por trás do Cristianismo e do Budismo. É mostrar que eles não são duas coisas separadas, porém, uma mesma corrente religiosa.

            O livro pretende resgatar uma religiosidade verdadeira. O Budismo e o Cristianismo são dois aspectos complementares de um mesmo credo, de um mesmo movimento. Ou seja, juntos eles completam um mapa filosófico-religioso confiável e católico (universal), constituindo-se, internamente, num caminho para a realização de nossas faculdades latentes mais elevadas e, externamente, na proposta de soluções consistentes para os grandes problemas mundiais.

 

 

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