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Capítulo 14

 

 

Carta do Mestre KH para a Loja de Londres

 

            As desconfianças geradas pelo caso Kiddle, questionando a própria existência e estatura dos Mahatmas, apenas tornaram mais agudos os conflitos já existentes na Loja de Londres. Aproximadamente em 9 de dezembro de 1883, Anna Kingsford e Edward Maitland publicam um panfleto com severas críticas ao livro de Sinnett, Budismo Esotérico. Logo após essa publicação, Kingsford recebeu um telegrama do Mestre KH dizendo: “Permaneça presidente.” (CW VI, xxiv)

 

            O Mestre KH também mandou um telegrama com o mesmo teor para Sinnett e uma carta que, embora escrita no dia 7 de dezembro, ele declara ter recebido em janeiro de 1884. Nela, o Mestre diz que havia chegado a hora de Sinnett provar sua boa vontade, seguindo seus conselhos, pois era o desejo de seu Superior, o Grande Chohan, que Anna Kingsford permanecesse como presidente. Escreve o Mestre KH:

 

“Em uma de suas cartas recentes para a “V.S.” [Velha Senhora, isto é, HPB], você expressa sua prontidão em seguir meu conselho em quase tudo que eu pudesse lhe pedir. Bem – o tempo chegou para você provar sua boa vontade. E como, nesse caso específico, estou simplesmente executando a vontade de meu Chohan, espero que você não experimente demasiada dificuldade em compartilhar de meu destino, agindo – como eu estou agindo. A “fascinante” Sra. K. tem que permanecer como presidente – jusqu’au nouvel ordre [até nova ordem]. Explicações detalhadas seriam uma tarefa por demais longa e tediosa. É suficiente que você saiba que sua luta contra a vivissecção e sua dieta estritamente vegetariana conquistaram completamente, para o lado dela, nosso austero Mestre. Ele liga menos do que nós para qualquer expressão ou sentimento de desrespeito externo – ou mesmo interno – aos “Mahatmas”. Deixe-a cumprir seu dever para com a Sociedade, ser verdadeira aos seus princípios e todo o resto virá no seu devido tempo. Ela é muito jovem, e sua vaidade pessoal e outras falhas femininas devem ser deixadas para o Sr. Maitland e o coro grego de seus admiradores.” (MLcr., 406)

 

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            E o Mestre anexa a essa uma outra carta, para ser lida numa o geral reunião da Loja de Londres, a respeito da qual comenta Virginia Hanson: “É uma das cartas mais importantes do livro, no que diz respeito à Sociedade Teosófica – especialmente no Ocidente”. (MLcr., 409) O Mestre começa dizendo que o fato de Kingsford permanecer como presidente não era apenas o desejo dele e do Mestre M., mas a vontade expressa do próprio Maha Chohan:

 

“A eleição da Sra. Kingsford não é uma questão de sentimentos pessoais entre nós e aquela Senhora, mas baseia-se inteiramente na conveniência de ter na direção da ST, num local como Londres, uma pessoa bem adaptada para o padrão e aspirações de um público (por enquanto) ignorante (das verdades esotéricas) e, portanto, malicioso. Também não é questão que tenha a menor importância se a dotada presidente da “Loja de Londres” da Soc. Teos. nutre sentimentos de reverência ou desrespeito para com os humildes e desconhecidos indivíduos que estão na direção da Boa Lei Tibetana – ou para com o autor da presente, ou qualquer de seus Irmãos – mas antes uma questão de se a mencionada Senhora está capacitada para o propósito que todos nós temos em nossos corações, a saber, a disseminação da VERDADE através de doutrinas esotéricas, transmitidas por qualquer canal religioso, e a atenuação do materialismo crasso e dos preconceitos e ceticismo cegos.” (MLcr., 409)

 

            O Mestre KH continua a carta dizendo que concordava com a Sra. Kingsford, quando essa dizia que o público ocidental deveria ver a ST como uma Escola Filosófica constituída sobre uma base Hermética, uma a vez que esse público, nunca tendo ouvido falar do Sistema Tibetano, tinha uma noção muito pervertida acerca do Sistema Budista Esotérico, e que:

 

“Desse modo, e até esse ponto, nós concordamos com as observações contidas na carta escrita pela Sra. K. para Madame B. [Blavatsky], com o pedido a essa última para “submeter a KH”; e lembraríamos a nossos membros da “LL”, com referência a isso, que a Filosofia Hermética é universal e não sectária, enquanto que a Escola Tibetana sempre será considerada, por aqueles que conhecem pouco, ou nada, sobre ela, como mais ou menos marcada pelo sectarismo. Uma vez que a primeira não está ligada a nenhuma

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casta, cor ou credo, nenhum amante da sabedoria Esotérica pode ter qualquer objeção ao nome o que, de outro modo, poderia sentir se a Sociedade à qual ele pertence fosse rotulada com uma denominação específica pertencente a uma dada religião. Filosofia Hermética adapta-se a qualquer crença e filosofia e não colide com nenhuma. Ela é o oceano sem limites da Verdade, o ponto central para onde fluem e onde se encontram todos os rios, assim como todos os riachos – estejam suas fontes no Oriente, Ocidente, Norte ou Sul. Assim como o curso do rio depende da natureza de sua bacia, assim o canal para a comunicação do Conhecimento precisa adaptar-se às circunstâncias à sua volta. (...)

            Portanto é evidente que os métodos do Ocultismo, embora no principal sejam imutáveis, ainda assim têm que se conformar às diferentes épocas e circunstâncias. O estado da sociedade inglesa como um todo – muito diferente daquela da Índia, onde nossa existência é um assunto de crença comum e, por assim dizer, inerente na população, e em vários casos de positivo conhecimento – requer uma política muito diferente na apresentação das Ciências Ocultas. O único objetivo pelo qual esforçar-nos é o melhoramento da condição do HOMEM por meio da difusão da verdade adaptada aos vários estágios de seu desenvolvimento e àquele do país em que ele habita e pertence. A VERDADE não tem marca de propriedade e não sofre por causa do nome sob o qual ela é promulgada – desde que o referido objetivo seja alcançado.” (MLcr., 409)

 

 

A Discórdia é a Harmonia do Universo

 

            Para o Grande Chohan, os dois – Sinnett e Kingsford – eram necessários, justamente por serem desiguais, por serem como “os dois pólos calculados para manter todo o corpo em harmonia magnética, uma vez que o criterioso emprego de ambos criará um excelente campo intermediário, que não seria obtido por qualquer outro meio; um corrigindo e equilibrando o outro”. (MLcr., 411)

 

            E o Mestre KH continua falando da importância da diversidade de opiniões, da liberdade de pensamento, da “harmoniosa discordância”,

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pois a discórdia é a “verdadeira harmonia do universo”, e que esse era o segredo do sucesso da ST na Índia:

 

“Eu quase não precisaria salientar como o arranjo proposto está calculado para conduzir a um harmonioso progresso da “L.L. ST.”. É um fato universalmente aceito que o maravilhoso sucesso da Sociedade Teosófica na Índia é devido inteiramente ao seu princípio de sábia e respeitosa tolerância às crenças e opiniões dos outros. Nem mesmo o Presidente Fundador tem o direito de, direta ou indiretamente, interferir com a liberdade de pensamento do mais humilde dos membros, e menos ainda procurar influenciar sua opinião pessoal. É apenas na ausência dessa generosa consideração que até mesmo a mais pálida sombra de diferença arma buscadores da mesma verdade, de outro modo sérios e sinceros, com o ferrão de escorpião do ódio contra seus irmãos, igualmente sinceros e sérios. Vítimas iludidas da verdade distorcida, eles esquecem, ou nunca souberam, que a discórdia é a harmonia do universo. Assim, na Sociedade Teosófica, do mesmo modo que nas gloriosas fugas do imortal Mozart, cada parte vai incessantemente ao encalço da outra, em harmoniosa discordância, nos caminhos do progresso Eterno, para encontrar e finalmente se fundir, no limiar do objetivo perseguido, em um harmonioso todo, que é a linha mestra na natureza. A Justiça Absoluta não diferencia entre os muitos e os poucos.” (MLcr., 412)

 

            Assim sendo, embora agradecendo à maioria dos teosofistas da Loja de Londres pela lealdade a eles, Instrutores invisíveis, era preciso lembrar que a Sra. Kingsford:

 

“... também é leal e verdadeira – àquilo que ela acredita ser a Verdade. E como ela é assim leal e verdadeira às suas convicções, por menor que seja a minoria que a apoie no presente momento, a maioria, liderada pelo Sr. Sinnett, nosso representante em Londres, não pode, com justiça, atribuir-lhe a culpa, a qual (...) assim o é apenas aos olhos daqueles que forem por demais severos. Todo teosofista ocidental deveria aprender e recordar, especialmente aqueles que pretendam ser nossos seguidores – que em nossa Fraternidade todas as personalidades submergem numa ideia – direito abstrato e absoluta justiça prática para todos. E que, embora não possamos dizer como os cristãos

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“retribua o mal com o bem” – repetimos com Confúcio “retribua o bem com o bem; para o mal – JUSTIÇA”. Assim os teosofistas que pensam do mesmo modo que a Sra. K. – mesmo que se opusessem, sem tréguas, a algum de nós pessoalmente – são merecedores de tanto respeito e consideração de nossa parte e de seus membros companheiros com visões opostas (enquanto forem sinceros), quanto aqueles que estão prontos, junto com o Sr. Sinnett, a seguir incondicionalmente apenas nossos ensinamentos especiais.” (MLcr., 412)

 

            No início de fevereiro o telegrama foi mostrado à Loja e Anna Kingsford confirmada na presidência. Como as duas facções não estavam conseguindo chegar à harmonia pedida na carta, os membros decidiram postergar a eleição, esperando a vinda de Olcott e Mohini a Londres, para ajudar a resolver a questão, sobre a qual, o Mestre KH afirmou que, embora:

 

“... dolorosa para alguns, e cansativa para outros, ainda assim é melhor isso do que se a velha calma paralítica tivesse continuado”. (MLcr., 413)

 

 

O Chohan Quer Anna Kingsford Dentro da ST (fevereiro de 1884)

 

            Tentando achar uma solução que permitisse que ela continuasse seu trabalho na Loja de Londres, Anna Kingsford propôs a criação de duas Seções. Uma seria formada pelos membros que quisessem seguir os ensinamentos dos Mahatmas, e também reconhecê-los como seus Mestres, com Sinnett como presidente. A outra encorajaria o estudo do Cristianismo Esotérico e também do Ocultismo ocidental, do qual ele surgiu. Essa última seria conhecida como Seção Católica, e seria presidida por ela. Nessa proposta, os membros poderiam atender livremente às reuniões das duas Seções. (Ransom, 197)

 

            Essa ideia era próxima ao que os Mestres queriam, com a criação de dois grupos dentro da Loja de Londres, uma vez que o Grande Chohan “que nunca interfere em nada teosófico, menos ainda europeu” (LBS, 90) desejava que Kingsford ficasse dentro da Sociedade, tendo seu espaço de trabalho preservado. HPB escreve a respeito para Sinnett:

 

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“Não sei o que é que o Mestre ordenou Olcott a fazer. Ele guardou segredo sobre sua instrução e não diz nada. Mas estou certa de que nem mesmo o Chohan a imporia à Sociedade contra a vontade da maioria. Deixe que funde uma sociedade separada da sua (...). Agora meu Patrão quer que ela permaneça como presidente – uma vez que o Velho Chohan está apaixonado pelo seu vegetarianismo e seu amor pelos animais – mas não necessariamente da sua Sociedade. O Chohan a quer dentro da Sociedade, mas não consentiria em forçar a opinião ou voto de um único membro da LL. Ele não influenciará o último deles, pois então ele não seria melhor que o Papa, que pensa que pode obrigar a uma obediência inquestionável e depois evitar que caia sobre si mesmo os carmas da pessoa. Isso é o que o Patrão acabou de me dizer para lhe escrever. Portanto, é melhor você se preparar e buscar o conselho e a opinião de cada membro que pensa como você, e estar pronto para se dividirem em duas Sociedades, pois isso é o que o Coronel tem que fazer – me foi dito.” (LBS, 81-83)

 

 

Armadilhas em Adyar (fevereiro/maio de 1884)

 

            Em dezembro de 1883, quando o príncipe Harisinghji compareceu à convenção anual em Adyar, Emma Coulomb lhe pediu um “empréstimo” de 2.000 rúpias para que ela pudesse montar um pequeno hotel e sair de Adyar. O príncipe, sem saber o que fazer, lhe prometeu que numa outra ocasião emprestaria. HPB e Olcott não eram ricos e o dinheiro que eles entregavam para Emma Coulomb dava apenas para as despesas da casa, não sobrando dinheiro para ela própria. Quando havia necessidade de mais recursos, esses eram conseguidos por doações – de membros ou dos próprios Mestres. Um exemplo disso ocorreu nessa primeira convenção em Adyar, no ano de 1883.

 

            O juiz P. Sreenivas havia arcado com quase todas as despesas da convenção, cerca de 500 rúpias, embora esse gasto fosse demasiado para ele. Quando HPB soube da preocupação de Olcott com essa despesa, ela “refletiu por um momento” – provavelmente comunicando-se mentalmente com o Mestre – chamou Damodar e lhe pediu para ir até o santuário trazer um pacote que lá encontraria. Em menos de 5 minutos ele voltou

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trazendo uma carta fechada endereçada para “P. Sreenivas Row”. Ao abri-la, o juiz encontrou uma afetuosa carta do Mestre KH agradecendo seus serviços e anexando notas promissórias do governo, nas costas das quais estava escrito, em lápis azul, as iniciais “K.H.” e que somavam 500 rúpias! (ODL III, 66)

 

            Em fevereiro de 1884 – acompanhada de Mohini, Franz Hartmann, Emma Coulomb e Babula – HPB partiu em viagem para o norte da Índia. Ao visitarem o príncipe Harisinghji em Varel, Emma Coulomb lhe cobrou a promessa do empréstimo. Porém, o príncipe consultou HPB que, sabendo do pedido, proibiu que qualquer empréstimo fosse feito. Isso naturalmente desgostou muito Emma Coulomb, que contava com esse dinheiro para conseguir sua independência financeira.

 

            Em 20 de fevereiro de 1884 HPB e Olcott, acompanhados por Mohini, Babajee, Babula e Padash partiram de Bombay para a Europa, para ajudar a resolver o caso da Loja de Londres. (ODL III, 73) Ao se despedir de Babula, Emma Coulomb lhe disse: “Me vingarei de sua patroa por me impedir de pegar minhas 2.000 rúpias.” (Ryan)

 

            Olcott havia criado um comitê, chamado de Conselho de Controle, para cuidar da administração da Sede em Adyar na sua ausência. Seu presidente era Franz Hartmann e faziam parte dele S.G. Lane-Fox, W.T. Brown, R. Raghunath Row, G. Mutuswamy Chetty, Sreenivas Row e T. Subba Row.

 

            Os aposentos de HPB ficaram aos cuidados do casal Coulomb, que haviam ficado com as chaves dos aposentos de HPB. Em 3 de março o Conselho tentou usar os aposentos para fazer sua reunião, mas Alexis Coulomb não permitiu que ninguém entrasse. Poucos dias depois Damodar pediu a Emma Coulomb para usar o quarto de HPB. Ela não apenas negou, mas lhe contou que HPB havia pedido para seu marido fazer portas falsas em seus aposentos.

 

            Esse fato fez com que Hartmann e Lane-Fox resolvessem investigar a questão num clima nada amistoso entre o Conselho e os Coulombs. (CW VI, xxvi) Damodar então recebeu uma nota do Mestre KH dizendo-lhe para ser mais caridoso com Emma Coulomb. (Hastings, 77) Hartmann também recebeu uma carta nesse sentido:

 

“Enquanto alguém não tiver desenvolvido um perfeito senso de justiça, ele antes deveria preferir errar pelo lado da misericórdia

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do que cometer o menor ato de injustiça. Mad. Coulomb é uma médium e, como tal, irresponsável por muitas coisas que ela possa dizer ou fazer. (...) Ela tem suas próprias fraquezas, mas seus maus efeitos podem ser minimizados exercendo sobre sua mente uma influência moral através de um sentimento gentil e amigável. Sua natureza mediúnica é um auxílio nessa direção, se for tirado proveito adequado dessa vantagem. É meu desejo, portanto, que ela continue tomando conta das coisas da casa, com o Conselho de Controle naturalmente exercendo um apropriado controle e supervisão e vendo, junto com ela, que nenhum gasto desnecessário seja feito. Uma boa reforma é necessária e pode melhor ser feita com a ajuda do que o antagonismo de Mad. Coulomb. Damodar teria lhe contado isso, mas sua mente foi obscurecida de propósito, sem que ele soubesse, para testar suas intuições.” (LMW 2nd Series, 131)

 

            Em 13 de maio o Conselho de Controle reuniu-se e julgou doze acusações de má conduta da Sra. Coulomb que incluíam injúrias, mentiras, furto de cartas, bisbilhotice e tentativa de extorsão, apoiados por grande número de testemunhos. Emma Coulomb não admitiu nem negou as acusações e após considerável resistência ela e o marido foram expulsos de Adyar.

 

            Embora HPB e Olcott não pudessem suspeitar do que estava acontecendo em Adyar, os Mestres o sabiam, pois numa carta em 5 de abril de 1884, que foi precipitada do teto de um trem, enquanto Olcott e Mohini iam de Paris para Londres, o Mestre KH lhe escreve:

 

“Não se surpreenda com nada que você possa ouvir de Adyar. Nem se desencoraje. É possível – embora tentemos evitar isso, dentro dos limites do carma – que vocês tenham que passar por grandes aborrecimentos domésticos. Vocês abrigaram sob seu teto um traidor e um inimigo por anos, e o grupo dos missionários está mais que disposto a se aproveitar de qualquer auxílio que ela possa ser induzida a prestar. Uma completa conspiração está a caminho. Ela está furiosa com o aparecimento do Sr. Lane-Fox e com os poderes que você deu ao Conselho de Controle.” (LMW 1st Series, 43)

 

            Quando o Conselho de Controle conseguiu entrar nos aposentos de HPB percebeu que, enquanto estavam lá trancados, Alexis Coulomb havia construído buracos e painéis deslizantes. Mais tarde, o casal

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afirmaria tratar-se de artimanhas mecânicas utilizadas por HPB para a produção de seus fenômenos. (Ryan)

 

 

A Distância Aumenta Minha Beleza (março de 1884)

 

            HPB e Olcott chegaram a Marselha em 13 de março. A viagem estava sendo feita contra a vontade de Madame Blavatsky. Em janeiro de 1884, ela escreveu para Sinnett dizendo que só concordara em viajar para a Europa com a seguinte condição:

 

Não preciso, não devo e não irei a Londres. Faça o que quiser. Nem mesmo vou me aproximar de lá. Mesmo que meu Patrão tivesse me ordenado isso – penso que preferiria enfrentar seu desagrado – e desobedecê-lo.” (LBS, 74)

 

            Na França, em março, HPB recebeu tantos convites insistentes para que fosse a Londres, que acabou respondendo-os na forma de uma circular, agradecendo aos convites, mas recusando-os, pois sua saúde não permitiria que ela fosse a Londres. Além disso, HPB escreve nessa circular:

 

“E qual seria a utilidade de minha ida a Londres? Que bem poderia eu fazer a vocês em meio a seus fogs misturados com as venenosas evaporações da “civilização superior”? Estou eu adequada para tais pessoas civilizadas como todos vocês? Em apenas sete minutos e um quarto, me tornaria perfeitamente insuportável para vocês, ingleses, se eu tivesse que transportar para Londres minha enorme e feia pessoa. Eu lhes asseguro que a distância aumenta minha beleza, a qual eu logo perderia se estivesse próxima.” (Letters of H.P. Blavatsky, VI)

 

            Para Sinnett HPB também escreveu que Olcott e Mohini, com as instruções que tinham dos Mestres M. e KH, respectivamente, eram as pessoas adequadas para resolver a questão, pois:

 

“Eu faria o oposto. Eu não poderia (especialmente em meu atual estado de nervos) ficar por lá e ouvir calmamente as espantosas novidades de que Sankara Charya era um teísta e que Subba Row não sabe do que está falando, sem que isso me mande de uma vez para a morte; (...). De fato eu não tenho mesmo vontade de ir para a Inglaterra. Eu amo todos vocês de longe, eu poderia

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odiar alguns de vocês da L.L. se tivesse que ir até lá. Você não entende por que? Você não pode compreender, com tudo o que sabe a meu respeito e da verdade (essa última é ignorada apenas pelos que não querem vê-la), que seria para mim um indizível sofrimento ver como os Mestres e sua filosofia são ambos mal interpretados?” (LBS, 78)

 

            Em 5 de abril de 1884, pela manhã, Olcott partiu de Paris para Londres, deixando HPB que declarava não ter a menor condição ou desejo de ir a Londres, pois estava com seus nervos fragilizados pela tensão acumulada nos meses em que o caso Kingsford-Sinnett vinha se arrastando:

 

“Como posso encarar uma Sociedade onde alguns de seus membros nutrem tais pensamentos insultantes e os expressam por escrito? É por isso que não posso ir a Londres. Se fosse seguir os ditames da minha afeição por vocês dois, e o meu desejo de me relacionar pessoalmente com membros tão encantadores como a Sra. e a Srta. Arundale, o Sr. Finch, o Sr. Wade e outros, eu conheço os resultados. Ou eu iria saltar, rasgando o céu e o inferno na primeira oportunidade, ou teria que explodir como uma granada. Não posso manter a calma. Secretei e acumulei bílis por mais de seis meses durante esse embroglio Kingsford-Sinnett; segurei minha língua e fui forçada a escrever cartas civilizadas que são agora vistas como “correspondência simpática e encorajadora”. Eu – não importa o que tenha acontecido, e o quanto sofri dessa coléres rentrés [raiva reprimida]; minha doença atual é mais do que parcialmente devida a eles. Bem, não nasci para uma carreira diplomática. Eu entornaria o caldo – e não faria bem algum – de qualquer modo, não até que toda a coisa seja decidida e o equilibre théosophique est retabli [o equilíbrio teosófico seja restabelecido].” (LBS, 81)

 

 

HPB Chega Inesperadamente a Londres (abril de 1884)

 

            Nessa época William Judge estava com Madame Blavatsky em Paris, para ajudá-la com a Doutrina Secreta. Ele descreve que na noite de 5 de abril, quando estavam conversando, sentiu “o velho sinal de uma mensagem do Mestre, e vi que ela estava escutando.” (Caldwell 1991, 172)

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HPB então lhe disse que o Mestre acabara de lhe ordenar que fosse para Londres pelo expresso das 7:45 h da noite seguinte. Que ficasse por lá apenas um dia, retornando no seguinte. Assim, inesperadamente, obedecendo a ordens, embora confessando que não estava entendendo, ela partiu para Londres no dia 6 de abril, ficando hospedada com os Sinnett.

 

            No dia marcado para a eleição, 7 de abril, Maitland propôs a reeleição de Anna Kingsford, mas apenas um ou dois membros apoiaram a proposta. Sinnett então propôs Finch, que foi eleito pela maioria. Olcott sugeriu ao grupo de Kingsford que formassem uma nova Loja, que seria chamada de “Sociedade Teosófica Hermética” – o que foi aceito. (ODL III, 97)

 

            Depois de resolvido o ponto mais delicado, eles passaram para a discussão da noite. Olcott tentou harmonizar as diferenças de opinião, mas sem muito sucesso, e o clima tornou-se tenso. Então HPB entrou inesperadamente na reunião, sentando-se no fundo da sala, ao lado de Archibald Keightley, que era um membro novo e ainda não a conhecia pessoalmente. Ele descreve que, no momento em que alguém lá na frente aludiu a alguma ação de Madame Blavatsky, a robusta senhora a seu lado confirmou, dizendo em voz alta: “É isso mesmo.” Nesse ponto, a reunião virou uma confusão e Mohini correu para jogar-se aos pés de HPB. (Caldwell 1991, 175)

 

            C.W. Leadbeater, que também era um membro novo e estava presente nessa reunião, descreve que uma robusta senhora, vestida de preto, havia entrado e sentado no fundo da sala. Após alguns minutos, demonstrando impaciência com a falta de progresso das discussões, ela pulou de seu assento e gritou num tom de comando militar: “Mohini!”, saindo para o corredor. Então:

 

“O altivo e sério Mohini veio correndo por aquela longa sala, na maior velocidade e, assim que alcançou o corredor, jogou-se incontinente, com sua face no chão, aos pés da senhora de preto.” (Leadbeater, 36)

 

            Muitas pessoas levantaram-se, confusas, não sabendo o que estava acontecendo. Mas logo depois Sinnett, que também havia ido até o fundo, voltou e anunciou:

 

“Permitam-me apresentar à Loja de Londres como um todo – Madame Blavatsky!

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            “A cena que se seguiu era indescritível; os membros freneticamente alegres e, contudo, ao mesmo tempo, meio amedrontados, se juntaram à volta de nossa grande fundadora, alguns beijando suas mãos, vários ajoelhando-se diante dela, e dois ou três soluçando histericamente.” (Leadbeater, 37)

 

            Ela então foi conduzida à plataforma onde, após ouvir explicações sobre o caráter insatisfatório da reunião, a encerrou e reuniu-se com os dirigentes. Após ouvir explicações de Kingsford e Sinnett, ralhou com ambos, como se fossem dois estudantes e fez com que dessem as mãos, numa demonstração de que suas diferenças haviam se encerrado! (Leadbeater, 37)

 

            Como já vimos extensamente, os sentimentos de HPB estavam longe de imparciais e isentos, como aparentam ser na narrativa de Leadbeater. Após a reunião, Madame Blavatsky voltou para a casa dos Sinnett, e ficou em Londres por uma semana, antes de voltar a Paris.

 

            O episódio acima narrado, em que Mohini atira-se aos pés da Madame Blavatsky, é muito interessante. Ele apresenta aspectos que dificilmente podemos entender completamente, pois estão na alçada da vida do Ocultismo, e não da vida comum. Isso porque, ainda em outubro de 1883, quando o Mestre decidiu que no ano seguinte Mohini iria Londres com Olcott para ajudar a resolver a questão da Loja de Londres, HPB escreveu a Sinnett, alertando-o para o fato de que não deveria considerar o Mohini que ele havia conhecido como o mesmo que estaria em Londres:

 

“Em 17 de fevereiro Olcott provavelmente partirá para a Inglaterra para tratar de vários assuntos, e Mahatma KH envia seu chela, sob o disfarce de Mohini Mohun Chatterjee (...). Não cometa o erro, meu querido patrão, de tornar o Mohini que você conheceu pelo Mohini que irá. Há mais de uma Maya nesse mundo, da qual nem você, nem seus amigos e o crítico Maitland são sabedores. O embaixador será investido de uma vestimenta interna, bem como de uma vestimenta externa. Dixit.” (LBS, 65)

 

            Do mesmo modo que HPB havia alertado Sinnett de que não considerasse Mohini como sendo o Mohini usual, o Mestre KH manda uma carta ao próprio Mohini, em março de 1884, lhe dizendo algo semelhante com relação à Madame Blavatsky e lhe orientando como deveria se comportar. Ele lhe diz que como as aparências eram importantes, especialmente entre os europeus, era necessário impressioná-los externamente antes

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que uma impressão interna, regular e duradoura, ocorresse. Por essa razão, o Mestre orienta Mohini que quando HPB chegasse a Paris:

 

“... você irá encontrá-la e recebê-la como se estivesse na Índia e ela fosse sua própria mãe. Você não deve ligar para a multidão de franceses e outros. Você tem que impressioná-los; e, se o Coronel lhe perguntar por que, você lhe responderá que é o homem interior, o ocupante interno que você está saudando, não HPB, pois você foi avisado por nós nesse sentido. E saiba, para sua própria edificação, que Alguém muito superior a mim gentilmente concordou em inspecionar toda a situação, sob o disfarce dela, e então visitar, através do mesmo canal, ocasionalmente, Paris e outros locais onde membros estrangeiros possam residir. Você irá saudá-la desse modo ao vê-la e ao despedir-se dela, durante todo o tempo em que estiver em Paris – independente de comentários e de sua própria surpresa. Isso é um teste.” (LMW 2nd Series, 111)

 

            Como vimos, HPB acabou inesperadamente indo a Londres e Mohini encontrou-a lá, e não em Paris, mas obedeceu literalmente às instruções de seu Mestre, jogando-se aos seus pés para saudá-la, como faria com sua mãe na Índia. Ou, quem sabe, para saudar ao “Ocupante” interno que ali poderia estar.

 

 

A Sociedade Hermética (abril de 1884)

 

            Em 9 de abril a Loja Hermética foi organizada, com Olcott e Mohini presentes. (Ransom, 198) Entretanto, o problema não ficou resolvido pois poucos dias após a criação da Loja Olcott resolveu editar uma nova regra pela qual as filiações múltiplas ficavam proibidas. Isso significava, na prática, que os membros da Loja Hermética não poderiam frequentar as reuniões da Loja de Londres, e assim se beneficiar das instruções lá oferecidas e vice-versa. Essa decisão transtornou os planos para a Loja Hermética e, em 22 de abril, o grupo de Kingsford decidiu devolver a carta constitutiva e formar uma sociedade independente da Sociedade Teosófica (a Sociedade Hermética). (Ransom, 198)

 

            Maitland diz que Olcott teria feito essa regra, que proibia a filiação múltipla, seguindo conselhos de Sinnett. (Kingsford 1916, 24) Talvez

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seja a isso que o Mestre KH esteja se referindo nesta passagem abaixo, onde repreende Sinnett:

 

“Então você nega que jamais tenha havido qualquer rancor em você contra K. [Kingsford]. Muito bem; chame-o de qualquer outro nome que quiser; ainda assim foi um sentimento que interferiu com a estrita justiça, e fez O. [Olcott] cometer um erro ainda pior do que o que ele já havia cometido – mas que foi permitido seguir seu curso, pois se adequava aos nossos propósitos, e não causou nenhum grande mal, a não ser para ele o mesmo – que foi tão mesquinhamente desdenhado por isso.” (MLcr., 424)

 

            A Sociedade Hermética foi fundada em 9 de maio e logo se provou um grande sucesso, com as palestras de Anna Kingsford enchendo grandes salões. No final de 1884, Kingsford e Maitland saíram da Loja de Londres, mas não abandonaram a ST, permanecendo ligados à Sede da ST em Adyar.

 

            A Sociedade Hermética funcionou regularmente, sobretudo com palestras de Anna Kingsford e Maitland, até o início de 1887, quando o estado de saúde dela já estava muito debilitado. Ela tinha problemas pulmonares crônicos e acabou morrendo de tuberculose, aos 42 anos, em 22 de fevereiro de 1888. (Godwin 1994b, 335)

 

            Após sua morte, Maitland publicou dois livros em nome de Anna Kingsford. O primeiro, “O Credo da Cristandade, e Outros Discursos e Ensaios sobre Cristianismo Esotérico” é composto de várias de suas palestras na Sociedade Hermética. O outro é uma compilação de suas Iluminações obtidas durante quase 14 anos, e que recebeu o título de “Vestida com o Sol, o Livro das Iluminações de Anna (Bonus) Kingsford”.

 

            Podemos agora avaliar melhor porque a Sociedade Teosófica perdeu uma grande oportunidade de se transformar naquilo que os Mestres tanto almejavam: um centro onde diferentes tradições pudessem conviver harmoniosamente, colocando em prática a tolerância que é a base do seu 1° Objetivo. Não há dúvidas de que, caso Anna Kingsford tivesse permanecido ativa dentro da Loja de Londres, como queria o Grande Chohan, isso teria marcado o início de uma abertura inédita na ST. Pois, como o Mestre KH escreveu:

 

“... a Filosofia Hermética é universal e não sectária, enquanto que a Escola Tibetana sempre será considerada (...) como mais

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ou menos marcada pelo sectarismo. (...) Filosofia Hermética adapta-se a qualquer crença e filosofia”. (MLcr., 409)

 

            No entanto, a Sociedade Teosófica seguiu outro caminho, muito menos universal, e acabou desenvolvendo uma doutrina própria, com um perfil e uma terminologia bastante orientais, que passou a ser denominada de “Teosofia”. Assim sendo, não é estranho que o próprio Mestre KH – que seguindo a vontade do Chohan interferiu na crise da Loja de Londres – tenha feito um severo alerta quanto aos caminhos que estavam sendo seguidos pela ST escrevendo, em 1900, na última carta conhecida com a caligrafia dos Mestres:

 

“A ST e seus membros estão lentamente manufaturando um credo. Diz um provérbio tibetano: ‘credulidade gera credulidade e termina em hipocrisia’.” (LMW 1st Series, 99)

 

            Não há dúvidas, portanto, de que a Sociedade Teosófica perdeu uma grande oportunidade de se transformar naquele centro de vanguarda do pensamento que os Mestres tanto almejavam, especialmente no Ocidente. Um centro onde essas duas facções pudessem conviver harmoniosamente, demonstrando, na prática, a tolerância pregada no 1° Objetivo. Como bem notou P. Washington:

 

“O conflito entre Blavatsky e Kingsford era tanto pessoal quanto doutrinário. Duas mulheres fortes (...) estavam fadadas a entrar em conflito. (...)

            “Essa foi uma oportunidade perdida. As duas mulheres tinham forças diferentes que poderiam ter sido complementares. Se Anna tinha vantagem sobre HPB na aparência, posses e posição social, HPB tinha o controle de uma organização internacional. Mas as diferenças foram longe demais. Elas são descritas pela própria Anna em termos de ocultistas orientais versus místicos ocidentais, e esse conflito ainda causaria frequentes divisões dentro da Sociedade nos anos seguintes. Enquanto HPB rejeitava Kingsford como sendo uma médium comum, no livro de Anna sua rival era uma ocultista – e ocultistas estão bem abaixo na escala religiosa, em contato com o mundo dos espíritos apenas indiretamente.

            “Pouco antes de sua própria morte, Anna K. afirmou ter sonhado que encontrou HPB no céu budista. Blavatsky ainda estava fumando seus desagradáveis cigarros, mas assim o fez somente

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após pedir humildemente permissão para o próprio patrão de Anna, Hermes (...). A cena é apropriadamente simbólica: a divisão entre as crenças ocidentais e orientais; a primeira, mas de modo algum a última rebelião daqueles que sentiam que a Teosofia estava se inclinando demais em direção ao Oriente e abandonando a tradicional fé cristã. Esse não era, de acordo com seus críticos, um sinal de universalidade religiosa, mas de uma ardorosa adoção de um credo estrangeiro.” (Washington, 77-78)

 

            Também não resta dúvida de que essa atmosfera de tolerância mútua, de discordância de opiniões e crenças dentro de uma harmonia maior, bem como de real liberdade de expressão, não só no discurso, mas também na prática, era o que os Mestres estavam almejando para a Sociedade Teosófica.

 

            No episódio narrado acima, da crise na Loja de Londres, envolvendo Kingsford, Maitland, Sinnett, Olcott, a própria HPB e tantos outros, quando Anna Kingsford e Edward Maitland protestaram contra a maneira submissa e a idolatria que os membros, liderados por Sinnett, estavam desenvolvendo com relação aos Mestres, T. Subba Row foi encarregado por seu Mestre de escrever uma resposta aos dois, publicada em janeiro de 1884. Nessa carta ele ressalta a liberdade que deveria existir dentro da Sociedade Teosófica:

 

“Mas a nenhum membro é permitido, pelas regras da Associação, forçar suas próprias opiniões ou crenças individuais sobre seus companheiros, ou insistir que elas sejam aceitas por eles. A Sociedade não constitui um corpo de instrutores religiosos, mas simplesmente uma associação de investigadores e buscadores.

            “Esses são os princípios que estão definitivamente estabelecidos para a orientação da Sociedade Teosófica, com a aprovação e beneplácito de grandes Iniciados dos Himalaias, os quais são seus reais fundadores. (...) Se o Sr. Sinnett positivamente proibiu qualquer expressão de discordância ou de crítica a seu livro, ou “de sua suprema autoridade”, como se alega na carta sob exame, ele está, sem dúvida, agindo contra as Regras da Sociedade. (...) O Sr. Sinnett tem tanto direito a explicar seu Budismo Esotérico aos membros da Loja de Londres, quanto a Sra. Kingsford e o Sr. Maitland têm de explicar o seu significado esotérico da simbologia cristã.” (Row, 394-395) 

 

 

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