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COLÓQUIO COM O GRUPO ANNA KINGSFORD

 

 

             Participação do Grupo: Ficou uma dúvida de por que o Cristianismo é à base da civilização ocidental?

 

            Orador: Para falar bem sobre isso seria necessário muito tempo. Mas cabe lembrar uma palestra do Sr. Krishnamurti, na Índia, quando o ouvi afirmar que a religião é a base, é o alicerce de todas as civilizações. Não é só porque esse sábio fez essa afirmação que acredito nisso, é claro. Mas porque realmente percebo assim e, portanto, estou de acordo com isso. Por que razão?

            Em primeiro lugar, não se trata de algo válido apenas para o Ocidente, mas para todas as civilizações. Como no exemplo da civilização egípcia, com seus milênios de duração, que teve como base, inquestionavelmente, uma matriz filosófico-religiosa. Ou da civilização indiana, com seus vários milênios de existência, e que ainda está lá, embora rapidamente declinando diante do poder avassalador da civilização do Ocidente. Mas ela ainda está lá, com sua grandeza e com sua degeneração. Com toda a sua grande cultura, com suas castas degeneradas, seus templos, sua gloriosa Ioga, seus ashramas, sua astrologia, sua medicina, suas artes fascinantes, tudo baseado no Hinduísmo. Um Hinduísmo com suas próprias grandes “Bíblias”. As “Bíblias” dos Vedas, dos Upanixades, do Mahabharata – onde encontramos o Bhagavad Gita (a Sublime Canção) – do Ramaiana, e assim por diante.

            Não se trata, portanto, de algo válido apenas para o caso do Cristianismo e da civilização ocidental por ele influenciada. Não é nenhuma particularidade do Ocidente. Todas as grandes civilizações do passado e do presente se enquadram nessa regra de terem como base uma matriz filosófico-religiosa.

            Novamente, poderia vir a questão: Por que não uma base científica? Aqui eu lembraria da frase de Teilhard de Chardin: “tudo o que se eleva converge”. Assim, no dia em que nossa ciência comum, da qual nossa humanidade tanto se orgulha – assim como os engenheiros do Titanic – como se fosse uma maravilha, mas que tem tremendas fragilidades e limitações, e que, em nossos dias, ainda é completamente incapaz de bem conduzir a humanidade, a não ser no rumo do iceberg, no rumo das catástrofes, no dia em que essa ciência, que a Dra. Kingsford chama de “Nesciência”, isto é, ciência néscia, no dia em que ela estiver em condições de ser o alicerce de uma civilização onde exista harmonia, nesse dia ela terá se ampliado e se elevado, terá convergido para o encontro com a filosofia e a religião.

            Isso será necessariamente assim porque as coisas mais profundas, por sua própria natureza, somente podem ser realmente vivenciadas e conhecidas pelo caminho que é mais naturalmente associado com a filosofia e a religião. Ou seja, pelo caminho interno, do Silêncio, do Amor e do Espírito, e não esse meramente das faculdades do pensamento, dos poderes e das tecnicalidades externas ao Espírito, que caracteriza a ciência de nossos dias.

            Algum dia talvez a ciência alcance o nível de verdadeira Ciência, de Gnose, alcançando o conhecimento do Espírito, do profundo, e não ficando apenas no conhecimento superficial. Nesse dia o método científico terá sido ampliado e terá se libertado das limitações, da camisa de força da metodologia científica atual.

            Não muito tempo atrás ainda se estudava nas escolas de filosofia uma disciplina chamada Gnosiologia, que é o estudo das possibilidades de conhecimento, as teorias do conhecimento (ou gnose). Hoje isso é quase raro, e se fala apenas em Epistemologia. E a teoria do conhecimento, na grande maioria das academias, é sinônimo de Epistemologia. Lembrando que episteme significa carta, coisa escrita. Ou seja, a metodologia científica estreita impôs o seu padrão de conhecimento néscio sobre a própria filosofia das academias e se limita ao conhecimento do que pode ser escrito, se limita ao conhecimento gerado por meio dos critérios da ciência néscia que aí está.

            Filosofia, como devemos saber, não é isso, mas é a busca de alcançar, de estar próximo, é o amor, portanto, à Sabedoria, ou verdadeiro Conhecimento, o qual sempre é espiritual. Isso é algo muito próximo de religião, “re-ligação” do ser humano com a verdade profunda, com a realidade divina que está tanto fora quanto dentro de nós.

            E é por essa razão que a base de uma grande e duradoura civilização também deve ser, necessariamente, filosófica e religiosa. Porque, como dissemos, o conhecimento filosófico-religioso, em sua verdadeira definição, busca a profundidade necessária para ser a base de toda uma civilização, por mais que essas palavras (filosofia e religião) sejam vulgarmente empregadas de forma muito mais superficial.

            Talvez isso seja mesmo um tanto difícil de ser percebido claramente, e não disponho do tempo para as devidas explanações. Mas tudo indica que seja assim.

            O que chamamos hoje de ciência ainda não possui essa capacidade. Se algum dia possuir, como na frase de Teilhard de Chardin, terá convergido com a filosofia e a religião. Mas, para isso, terá que se libertar, antes, da camisa de força do método científico contemporâneo e de sua orgulhosa e néscia Epistemologia atual. Já podemos antever isso no caso de alguns grandes cientistas, a exemplo de Albert Einstein e de outros desse nível.

 

            Participação do Grupo: Entendi tudo isso, mas ainda questiono por que necessariamente o Cristianismo, por que não, por exemplo, o Hinduísmo?

 

            Orador: Não há um juízo de valor nisso. É apenas uma constatação. Quem está dominando o mundo de nossos dias? Quem está rapidamente impondo seus padrões civilizatórios e influenciando globalmente? Claramente, é a civilização ocidental que está exercendo essa influência e moldando as principais instituições na grande maioria dos lugares, como no exemplo da Índia que mencionei.

            Esse país se libertou do domínio colonial inglês com muita bravura, embora também com tragédias, como a partição do Paquistão. Muito bem. Mas, depois da libertação, onde foi buscar suas principais instituições jurídicas, sociais e políticas? Foi copiar, justamente, da Inglaterra! E até hoje a Índia apresenta uma constituição de cunho liberal, uma espécie de cópia da inglesa, sobretudo no que diz respeito ao seu modelo político-eleitoral, à forma de votar e de escolher seus dirigentes. Até hoje a Índia possui um sistema de voto distrital puro, muito semelhante ao da Inglaterra.

            Assim, não se trata de um juízo de valor, porém de uma constatação. A civilização ocidental está exercendo esse domínio, está modificando, para o bem e para o mal, o mundo todo. O Liberalismo com suas instituições jurídicas, políticas e com seu sistema econômico capitalista está se impondo sobre todo o mundo. Isso é um fato. E se esse é o fato, então, aquele tipo de base filosófico-religiosa desse modelo civilizatório é onde precisamos centrar nossa atenção, se quisermos mudar para melhor esse modelo civilizatório.

            Temos que trabalhar, que melhorar essa base que o mundo chama de Cristianismo, trazendo a luz da compreensão e da lógica para seus símbolos e doutrinas, hoje degeneradas, a fim de que o pensamento cientificista, que em nossa época é tão importante nas camadas intelectualizadas, possa se harmonizar com a espiritualidade, ou religião e filosofia verdadeiras. Sem isso, até onde posso ver, poucas esperanças teremos de encontrar soluções genuínas para nossos grandes problemas.

 

            Participação do Grupo: Mas essas coisas não são exatamente os ensinamentos que Jesus pregava.

 

            Orador: Por isso usei a frase “que o mundo chama de Cristianismo”, pois é essa interpretação grosseira, materializada e idólatra dos ensinamentos de Jesus que está na base desse cruel modelo civilizatório. Naturalmente, não estamos ignorando a tradição greco-romana e a judaica. Porém, essas tradições foram modificadas por uma dada interpretação dominante dos ensinamentos de Jesus. É isso o que o mundo chama de Cristianismo. E é esse conjunto que está na base da civilização ocidental e de suas principais instituições, juntamente com o cientificismo.

            Com o colapso do império romano ocidental, ao longo de toda a Idade Média, foram os mosteiros e, depois, também as primeiras universidades que exerceram essa influência civilizatória de base. Durante toda essa época a religião exerceu papel cultural evidentemente dominante. Depois, aos poucos, esse domínio foi enfraquecendo, ocorreram as reformas protestantes, e essa dominância foi cedendo espaço ao que chamamos de ciência moderna. Mas, a base do pensamento, como tentei antes explicar, ainda tem sua origem nessa tradição religiosa. Apenas, já na Idade Moderna e Contemporânea, a tradição religiosa foi se modificando, e agora está mesclada – e em geral submissa – ao chamado pensamento científico.

            Na verdade, foi justamente a materialização, a idolatria religiosa – seja a dita católica, seja a dita protestante – que gerou esse tipo de ciência que hoje é dominante. Uma coisa é filha da outra. A base, a matriz de toda essa civilização continua sendo aquela religião principal do Ocidente, que é o que o mundo chama de Cristianismo. Apenas na Idade Moderna e Contemporânea esse domínio se tornou cada vez menos explícito e mais indireto, com a intermediação do pensamento laico. Contudo, ainda a religião dominante no Ocidente é o Cristianismo, isso que se chama de Cristianismo, mas que, segundo a Doutora Kingsford, não é o verdadeiro Cristianismo.

            Não é o Hinduísmo que é a base do Ocidente. Mas sim esse movimento, essa tradição materializada e idólatra que é chamada de Cristianismo. Isso é apenas uma constatação, não é uma escolha minha. Alguns chamam a isso de tradição judaico-cristã, e na verdade é, como já falei, tanto judaico, como greco-latina e cristã. E se falamos também em tradição judaica e em tradição greco-latina, estamos falando daquelas tradições que influenciaram o Judaísmo, a cultura grega e a romana. E aí chegamos às culturas da Mesopotâmia e do Velho Egito. Tudo isso está na base da civilização ocidental, a qual está amplamente dominando o mundo, como é tão claro.

 

            Participação do Grupo: Isso é o que eu queria entender, acho que agora ficou mais claro.

 

            Orador: Foi essa civilização ocidental – com todas essas influências, mais a influência do pensamento laico científico moderno – que resultou no Liberalismo e no Marxismo que até hoje são as filosofias sociais dominantes. Aquelas que nos dão as instituições, as principais instituições que hoje dominam a maior parte do mundo.

            Isso tudo tem como base essa degeneração do verdadeiro Cristianismo. Mas é o que hoje que se chama de Cristianismo, e não é o Cristianismo original, do Cristo Jesus. Essa tradição dominante, com a civilização por ela influenciada, na verdade, repito, tem pouco de realmente cristã, como constatamos ao estudar o Novo Evangelho da Interpretação – o principal legado ao mundo de Kingsford e Maitland.

            Mas, não importa, pois é isso que está dominando o mundo e por isso usei a afirmação sintética do escritor inglês, de que o mundo não pode viver sem o Cristianismo, e também não pode viver com o Cristianismo da forma como ele está. Apenas dei outra interpretação, espero que mais ampla e profunda, para essas afirmações sintéticas.

            Realmente não dá para viver com o Cristianismo como ele está, e com o modelo civilizatório por ele influenciado, pois esse está levando o mundo direto para a colisão com o iceberg das catástrofes ambientais e sociais, com sua violência crescente entre os humanos e para com os animais, com as pandemias que, tudo indica, se aproximam, e com as anunciadas catástrofes ambientais.

            Então, é urgente uma re-interpretação, um resgate do verdadeiro Cristianismo, o qual, segundo a Dra. Kingsford, compõe uma unidade com o Budismo, quando corretamente interpretados. Temos, necessariamente, que resgatar, que restaurar a verdadeira religiosidade dessa tradição, pois disso dependem as possibilidades de novas instituições, de novos instrumentos de organização social, que nos permitam evitar e superar o iceberg que se aproxima.

            Se deixarmos a civilização ocidental da maneira que se encontra, ela está levando o mundo para a colisão com o iceberg, para as catástrofes que já mencionei. E, como disse, nisso não estou sendo original.

            Agora, para melhorarmos as bases da civilização ocidental precisamos melhorar o Cristianismo que aí está. Precisamos restaurar, precisamos resgatar, como fizeram Kingsford e Maitland, o verdadeiro Cristianismo, o qual compõe uma totalidade com o Budismo e com os ensinamentos de Pitágoras.

            A mensagem do Cristo Jesus veio para complementar os principais legados divinos que o antecederam. E isso foi o legado do Senhor Buda e o legado do Mestre que foi Pitágoras. Tudo isso segundo, novamente, o Novo Evangelho da Interpretação da Dra. Kingsford e de Edward Maitland. Será que isso ajudou?

 

            Participação do Grupo: Agora clareou. Mas gostaria de insistir no fato de que o Cristianismo tem seu aspecto cósmico, seu aspecto profundo, verdadeiramente místico. Qual a relação desse aspecto verdadeiro do Cristianismo com a base da civilização ocidental?

 

            Orador: Você está tocando em um ponto importante. Quero sublinhar, repetir, o ponto de vista que apresentei. Afirmei que o que está na base da civilização ocidental não é esse aspecto verdadeiro e místico, ou profundo, do Cristianismo.

            Se tivesse tempo, poderia mostrar para vocês a conexão entre os problemas da nossa civilização ocidental e a presente visão literal das Escrituras, mostrando a verdade da frase que está nas cartas de São Paulo, que a letra mata, e que é a interpretação lúcida, a interpretação espiritual, essa sim, que dá a vida.

            Mas o fato, em síntese, é que o que está na base da civilização que domina o mundo de hoje não é o verdadeiro Cristianismo, profundo e místico, porém o pseudo-cristianismo da interpretação literal e materialista, que é falsa, idólatra e corrompida. E é esse que está moldando as principais instituições do mundo de nossa época.

 

            Participação do Grupo: Esse que está nos conduzindo ao abismo.

 

            Orador: Sim. E por que razão? Porque na sua superficialidade, na sua idolatrização das Escrituras Sagradas, ele gerou – ainda que, em nossa época, indiretamente, através do filho ingrato do cientificismo – e continua apoiando, instituições incapazes de organizar o mundo de uma forma satisfatória.

 

            Participação do Grupo: As instituições que aí estão, dominando o mundo, não conseguem perceber isso. Aqui vou adicionar um ponto, que você não mencionou, que foi a contribuição de Kardec. Me refiro a esse homem, a esse cientista que foi Hipólito. Ele também entendia isso e percebeu a necessidade de uma reforma do Cristianismo, uma revisão do Cristianismo. Ele também fez, assim como Kingsford e Maitland, um trabalho fantástico na tentativa, que não é entendida até hoje, até porque a visão literal continua dominando. Creio que por isso Anna Kingsford também não teve um reconhecimento. Eu li pouco dos textos de Anna Kingsford, mas percebi uma grandeza na contribuição de Anna Kingsford, especialmente se considerarmos a época que ela viveu. Realmente acredito que é uma contribuição que traz muita luz e que temos muito a aprender com ela.

 

            Orador: Foi esse testemunho que eu tentei dar, da forma mais clara que pude, pois me considero aqui como estando em família. Não precisei medir muito as palavras. Falei com muita liberdade, partindo logo para a interpretação da importância, da relevância da contribuição dessas duas pessoas. Uma relevância que ainda está muito longe de ser reconhecida devidamente.

            Também não podemos esquecer que mesmo esse Cristianismo que se tornou dominante, não trouxe apenas coisas ruins. Se colocarmos em perspectiva a civilização romana, sem falarmos das outras que existiam na época, mesmo esse Cristianismo que aí está trouxe alguns aspectos positivos.

            Mas o que enfatizei é que esse Cristianismo que aí está ainda é uma das colunas mestras da civilização ocidental e não o verdadeiro Cristianismo. Portanto, precisamos muito, muito mesmo, difundir a verdadeira visão religiosa, cujo resgate foi realizado, sobretudo e pioneiramente, pelos profetas Anna Kingsford e Edward Maitland. Isso porque ao difundirmos essa visão, naturalmente, iremos externalizar coisas bem diferentes nas nossas ações (culturais, educacionais, políticas, econômicas e assim por diante).

            Externalizaremos essa dada visão de Deus, de ser humano, de caminho espiritual e de valores éticos. E, ao externalizarmos essa visão em nossa maneira de viver, ela irá se converter em novas instituições sociais: jurídicas, políticas, educacionais, econômicas.

            Aqui devemos lembrar que faz parte de termos um Cristianismo correto e lúcido uma integração com o Budismo – e esse é um aspecto da maior importância que ainda pouco falei. Não existe verdadeiro Cristianismo sem o Budismo e sem a contribuição de Pitágoras.

            Não sou eu quem está afirmando, porém a Dra. Kingsford e Maitland em seus escritos [como vemos nas citações que estão ao final, em Textos Complementares]. Esses escritos nos dizem que o Cristianismo original trabalhou tendo como base o legado do Budismo e do Pitagorianismo. E que o Cristianismo, quando entendido corretamente, é uma continuação da tradição budista e com ela compõe um todo harmônico.

            Essa é uma informação que considero ser fruto de uma genuína servidora dos Seres Divinos, e é uma afirmação que considero imensamente transformadora. Uma afirmação que pode encher o mundo de esperança porque o Budismo tem características filosóficas e interpretativas que são um resgate do que havia de melhor na civilização oriental e, assim, é um alicerce, uma base segura para a complementação do Cristo Jesus.

            O Senhor Buda viveu dentro do Hinduismo e foi um grande reformador do Hinduismo, analogamente a quando Jesus falou que não veio para destruir, mas sim para cumprir a lei e reafirmar os profetas (Mateus 5:17). Atribui-se ao próprio Senhor Buda a seguinte frase: “Cessa de fazer o mal, aprende e faz o bem, purifica o teu coração. Essa é a religião dos Budas”. Observem que afirmou que era não apenas o ensinamento dele (o Buda Sidarta Gautama), porém o ensinamento dos Budas. Como lemos nos Evangelhos de Jesus:

 

         “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir”. (Mateus 5:17)

 

            Aqui há outro aspecto que considero de grande importância, que é a natureza realmente católica (universal) dessa doutrina, desse ensinamento, desse caminho. Isso porque o Senhor Buda deixou sua mensagem no solo do Oriente. Oriente que é de onde vêm a grande luz de toda a humanidade. Ex oriente lux, como repetiu a Dra. Kinsgford, que significa “do Oriente vem a luz” (The Credo of Christendom, p. 94). E o Senhor Buda realizou uma espécie de restauração sintética de todo o grande legado do Oriente, que já estava bastante degenerado.

            Já o Senhor Cristo Jesus trabalhou sobre esse legado anterior, juntamente com o do grande Mestre que foi Pitágoras, que viveu no Ocidente quase na mesma época que o Senhor Buda. A missão do Cristo Jesus, portanto, foi a de realizar uma espécie de complementação, tornando essa tradição já pré-existente mais completa, mais abrangente, mais católica.

            Veja que isso significa, ao unir Oriente e Ocidente, uma tradição realmente católica. Católico quer dizer universal, que pertence a todos. Ora, isso começa a fazer sentido, quando percebemos a tradição cristã como embasada, necessariamente, nas tradições budista e pitagórica. Não como coisas separadas, uma lá e outra cá, mas formando um todo complementar e harmônico. Nesse contexto, o Oriente e o Ocidente naturalmente se completam, se unem. E aqui seria bom lermos o texto em que a Dra. Kingsford nos escreve sobre a fundamental natureza católica da verdadeira Igreja cristã:

 

         1. (*) A FÉ cristã é a herdeira direta da velha fé romana. Roma foi a herdeira da Grécia, e a Grécia do Egito, de onde se originaram o legado de Moisés e o ritual hebraico.

         O Egito foi apenas o foco de uma luz cuja verdadeira fonte e centro era o Oriente em geral – Ex Oriente Lux. Pois o Oriente, em todos os sentidos, geograficamente, astronomicamente e espiritualmente, é sempre a fonte de luz.

         Mas, embora originalmente derivada do Oriente, a Igreja de nossos dias e de nosso país é modelada diretamente a partir da mitologia greco-romana, e de lá retira todos os seus ritos, doutrinas, cerimônias, sacramentos e festivais.

         Portanto, a exposição que será feita sobre o Cristianismo Esotérico tratará mais especificamente dos mistérios do Ocidente, uma vez que suas idéias e sua terminologia são para nós mais atrativas e próximas do que as concepções não artísticas, a metafísica não familiar, o espiritualismo melancólico e a linguagem pouco sugestiva do Oriente.

         Extraindo sua essência-vital diretamente da fé pagã do velho mundo Ocidental, o Cristianismo mais proximamente se parece com seus pai e mãe imediatos, do que com seus ancestrais remotos, e será, então, melhor exposto com referência a suas fontes da Grécia e de Roma, do que com referência a seus paralelos bramânicos e védicos.

         2. A Igreja cristã é católica, ou então ela não é nada que mereça, em absoluto, o nome de Igreja. Pois católico significa universal, todo-abarcante: – a fé que sempre e em todos os lugares foi recebida. A prevalecente visão limitada desse termo é errada e prejudicial.

         A Igreja cristã foi inicialmente chamada de católica porque ela abarcava, compreendia e tornou seu o passado religioso de todo o mundo. Reunindo em sua figura central – do Cristo – e em torno dessa figura todas as características, lendas e símbolos até então pertencentes às figuras centrais das dispensações anteriores, proclamando a unidade de toda aspiração humana, e formulando em um grande sistema ecumênico as doutrinas do Oriente e do Ocidente.

         3. Assim, a Igreja católica é védica, budista, zend-avesta e semítica. Ela é egípcia, hermética, pitagórica e platônica.

         4. Ela é escandinava, mexicana e druídica. Ela é grega e romana. Ela é científica, filosófica e espiritual.

         Encontramos em seus ensinamentos o panteísmo do Oriente, e o individualismo do Ocidente. Ela fala a língua e pensa os pensamentos de todos os filhos dos homens; e em seu templo todos os deuses estão em um lugar sagrado.

         Eu sou vedantina, budista, helenista, hermética e cristã, porque eu sou católica. Pois nessa única palavra todo o Passado, Presente e Futuro estão abarcados.

         Como Santo Agostinho e outros dos Padres (Pais) da Igreja verdadeiramente declararam, o Cristianismo não contém nada de novo a não ser o seu nome, estando próximo dos antigos desde o seu início. E as várias seitas, que retém apenas uma porção da doutrina católica, são apenas como cópias incompletas de um livro, do qual capítulos inteiros foram retirados, ou como representações de uma peça teatral na qual apenas alguns de seus personagens e de suas cenas foram mantidos.” [The Credo of Christendom, (O Credo do Cristianismo), p. 94-96]

(*) Essa numeração indica os parágrafos no original, em inglês.

 

            Participação do Grupo: Precisamos de mais conhecimento para divulgar melhor essa continuidade, para fazer esse resgate.

 

            Orador: Esse reconhecimento, esse resgate, ainda é incipiente. Mas ele já começa a aparecer, mesmo em textos acadêmicos. Recentemente a Moema me trouxe uma obra chamada O Buda Jesus, que é uma obra de pesquisadores acadêmicos. Autores que procuram citar fontes fidedignas, como os manuscritos do Mar Morto e do Alto Egito. Não estou trazendo apenas elogios à obra, pois ela contém grandes limitações, mas estou corroborando essa afirmação de que essa noção de complementaridade entre Budismo e Cristianismo já começa a aparecer aqui e acolá, pelo menos para aquelas pessoas que estudam, que pesquisam.

            Via de regra, o pessoal “ouviu a galinha cantar, mas ainda não encontrou o ovo”, por assim dizer. Quando comparamos com as obras de Kingsford e Maitland, essas obras modernas, posteriores, são muito mais limitadas. Isso não quer dizer que não sejam importantes, pois como no caso dessa citada, nos traz uma luz acadêmica, razoavelmente bem fundamentada, que é importante para essa aproximação do Cristianismo com o Budismo, sobretudo as descobertas do Mar Morto e do Alto Egito. Embora se trate apenas de uma obra acadêmica que alude, da sua maneira, essa aproximação, ela nos traz fontes, documentos, ilações, e assim por diante, que são, para nós, de real valor.

            Os autores pesquisaram e revelaram essa ligação histórica, que viria desde os Essênios, que eram muito ligados aos Terapeutas. E esses eram visivelmente influenciados pelo Budismo. E assim vão aludindo a essa real ligação.

            Contudo, não devemos perder de vista que para uma verdadeira religiosidade o que importa é uma interpretação lúcida da mensagem daqueles que são verdadeiros profetas, que tiveram uma comunhão direta com o divino, como é o caso de Anna Kingsford e Edward Maitland. E para eles o fato é que Cristianismo e Budismo compõem um todo harmônico e indivisível, de modo que podemos afirmar que não existe verdadeiro Cristianismo sem a fundação, sem a base do Budismo, bem como podemos afirmar que, hoje, não pode existir verdadeiro Budismo sem a compreensão da complementação do Cristianismo.

            Costumo dar uma imagem, apenas para ajudar a fixar, que o Budismo, junto com os ensinamentos de Pitágoras, constituem os alicerces e as paredes, enquanto que o Cristianismo constitui o telhado de uma mesma casa, de uma mesma grande construção.

            Mas esse conhecimento é ainda muito novo para o mundo em geral, para o mundo das religiões comuns, embora não para alguns do mundo acadêmico, que começam a perceber, por diferentes caminhos, essa complementaridade, como no exemplo da obra citada – O Buda Jesus.

 

            Participação do Grupo: Então há outras obras no sentido de mostrar essa ligação existente entre o Budismo e o Cristianismo?

 

            Orador: Sim. Mas, até onde conheço, ainda são incipientes. Quando comparamos as obras de Kingsford e Maitland com essas obras mais recentes, como o exemplo citado, vemos que há uma grande diferença de clareza, de amplitude e de profundidade. No entanto, é importante mencionarmos a existência dessas obras, porque elas estão trazendo luzes, conhecimentos e informações que corroboram as revelações trazidas por Kingsford e Maitland. Isso ocorre, sobretudo, graças às descobertas dos manuscritos do Mar Morto e do Alto Egito, no século passado.

            Temos obras, inclusive com reconhecimento acadêmico, que mostram essa aproximação entre o Budismo e o Cristianismo. Até mesmo o Papa Bento XVI, em uma homilia recente [na tarde da Quinta-Feira Santa, 5 de abril de 2007], refere-se a esses novos conhecimentos – como a influência da comunidade dos Essênios – para explicar, pelo menos como uma forte hipótese, segundo o Papa, certas aparentes inconsistências presentes nos Evangelhos. No caso, tratava-se da data da Páscoa.

            Vale lembrar que o Papa é reconhecidamente um erudito nessa matéria e, também, reconhecidamente, uma pessoa de visão tradicional, conservadora. Portanto, sua referência a essa matéria nos dá uma boa idéia de até que ponto esses novos conhecimentos já estão sendo aceitos pelo meio científico convencional.

            Assim, hoje já é tida como quase certa, ou muito provável, a influência dos Essênios nos primórdios do Cristianismo, quer em relação ao Cristo Jesus, quer em relação a alguns dos profetas precursores, como João Batista. Os Essênios, por sua vez, eram muito próximos aos Terapeutas, e ambos eram claramente influenciados pelo Budismo. Essas comunidades estavam próximas de importantes rotas de passagem para o Oriente. E é muito natural que a influência budista estivesse presente entre aqueles de verdadeira religiosidade. Esses são conhecimentos científicos que corroboram esse ponto da união do Budismo e do Cristianismo.

            Vale à pena lermos algumas passagens da obra que já mencionamos, O Buda Jesus, para darmos uma idéia desse tipo de corroboração:

 

“(...) nossa fonte, Fílon, afirma que os terapeutas e os essênios eram dois grupos com uma única orientação. (...)

         Os terapeutas certamente mantinham relações com os essênios. (...) Jesus fez sua aparição pública entre a comunidade de Qumran e entre os batistas – ou seja, entre seitas judaicas obviamente ligadas aos essênios. (...)

         A semelhança entre os ideais essênicos e budistas é tão evidente que hoje existe um grande número de livros dedicados a analisar como o pensamento budista chegou até os judeus essênios. A acreditarmos na afirmação de Fílon, ele deve ter chegado através dos terapeutas. (...)

         Hoje, depois que os textos da comunidade de Qumran foram em grande parte elucidados, muitos pesquisadores acreditam que os habitantes de Qumran eram essênios. (...)

         Sabemos que Jesus fez sua aparição entre o povo de Qumran e que obviamente existe alguma ligação entre essa comunidade, os essênios, e os terapeutas. (...)

         Nessas descrições, reconhecemos algumas semelhanças – mas também diferenças – com os terapeutas. O curioso é que os essênios tinham muitos costumes e atitudes diante da vida, em comum com os budistas, o que explica as muitas comparações estabelecidas entre os dois grupos”. (H. Kersten e E. R. Gruber, O Buda Jesus: As Fontes Budistas do Cristianismo – pp. 269-274)

 

            Essas questões científico-acadêmicas não são tão importantes no que diz respeito à verdadeira religiosidade. Essas corroborações são de menor importância para a verdadeira religião onde o que é importante, repito, é uma interpretação lúcida por parte daqueles que são verdadeiros profetas, ou seja, que tiveram uma comunhão direta com os Seres Divinos, como é o caso da Dra. Kingsford e Maitland.

            Agradeço a lembrança de que esse resgate do Cristianismo passa, necessariamente, por essa complementaridade com o Budismo. Repito que, segundo o Novo Evangelho da Interpretação, não existe verdadeiro Cristianismo sem a base do Budismo e do Pitagorianismo. São como partes integrantes de um todo, no qual, sem as outras partes o Cristianismo fica incompleto [ver citações em Textos Complementares].

            Se aceitarmos essa necessária complementação, então, também podemos afirmar que não existe verdadeiro Budismo sem a complementação do Cristianismo. Trata-se de uma única tradição, de uma única corrente, e esse conhecimento precisa ser resgatado. Provavelmente, somente esse resgate pode reaproximar as camadas intelectualizadas e o pensamento científico da espiritualidade e, assim, por meio dessa intermediação do pensamento científico, gerar as novas instituições tão necessárias para a solução dos problemas globais, do iceberg ao qual o Titanic do mundo de nossos dias se aproxima tão perigosamente. A Dra. Kingsford e Maitland afirmam que:

 

         “As duas religiões constituem, respectivamente, o aspecto exterior e o aspecto interior do mesmo Evangelho, os alicerces estando no Budismo – incluindo nesse termo o Pitagorianismo – e a iluminação estando no Cristianismo. E da mesma forma que sem o Cristianismo o Budismo está incompleto, assim também o Cristianismo sem o Budismo é ininteligível”. (p. 251)

 

            E eles também afirmaram com toda a clareza que:

 

“Da união espiritual na fé una de Buda e Cristo, nascerá a esperada redenção do mundo”. (p. 252)

 

            Essas afirmações constam da principal obra desses profetas, que é chamada The Perfect Way, or, The Finding of Christ (O Caminho Perfeito, ou, A Descoberta de Cristo).

            Depois poderemos aprofundar se for o caso. Mas, para o mundo em geral, esse conhecimento é ainda muito novo. Como vimos, ele começa a ser percebido, timidamente, aqui e ali. E, ainda, praticamente em nenhum lugar, fora do Novo Evangelho da Interpretação, ele é reconhecido plenamente.

            Se isso for uma verdade, se não for uma invenção, uma fantasia, então, todos aqueles que se aproximarem dos Grandes Seres – que são os verdadeiros pastores da nossa humanidade – deverão chegar a esse conhecimento.

 

            Participação do Grupo: Esses Seres seriam os anjos?

 

            Orador: São também os irmãos angélicos, mas também mais do que isso. São aqueles elevados Seres que constituem aquilo que é referido como a Igreja Celestial. E, em termos esotéricos contemporâneos, é conhecido como a Hierarquia Oculta, ou a Grande Fraternidade.

            O Sr. Jesus, o Sr. Gautama, tantos outros Grandes Seres, tantos verdadeiros santos, seja no Cristianismo, seja no Budismo, seja em outras tradições, onde estão todos esses Seres? Esses Grandes Seres, essas Grandes Almas, estão onde?

            Eles estão aqui trabalhando. No Cristianismo também são referidos como “a Comunhão dos Santos”. A nossa elevação significa uma convergência com essas Grandes Luzes, com esses Filhos de Deus, que existem, que estão intensamente atuantes no mundo todo. Lembro, nesse sentido, de uma frase do Evangelho de Tomé, que seria bom estar sempre viva em nossas mentes:

 

         “113. Os discípulos perguntaram-lhe: Em que dia vem o Reino?

Jesus respondeu: Não vem pelo fato de alguém esperar por ele; nem se pode dizer ei-lo aqui! Ei-lo acolá! O Reino está presente no mundo inteiro, mas os homens não o enxergam”.

 

            Permitam trazer um outro depoimento pessoal, lembrando que se trata de um cientista social falando, o que torna o depoimento mais curioso, mas também mais digno de ponderação. Por muitos anos da minha vida pensei assim: onde estão esses Grandes Seres, esses Seres Divinos, que não dão um jeito nessa humanidade? Eu ficava angustiado me perguntando se não estaria acreditando em fantasias, porque os problemas, a dor, a miséria, que estão aí, são tão gritantes e, por anos da minha vida, fiquei me perguntando onde estariam esses Grandes Seres, que não encaminhavam soluções para essas dores, para esses problemas.

            Hoje, no entanto, a minha visão mudou diametralmente, graças a um aprofundamento da minha capacidade de percepção e mesmo graças a meus estudos de ciências sociais, especialmente de ciência política. Hoje percebo que se a humanidade continua sobrevivendo, se os sistemas nacionais e internacionais continuam operando, se a barbárie sem fim não toma conta – algo que claramente poderia ocorrer se analisássemos as conseqüências desastrosas das equivocadas idéias dominantes – isso apenas não ocorre, hoje percebo claramente, por uma espécie de “milagre” que acontece todos os dias, e esse “milagre” significa a intervenção, o trabalho contínuo de inspiração, de correção, de amparo e tantas outras coisas, por parte desses Grandes Seres e de seus auxiliares humanos e angélicos.

            Não sei se consigo tornar clara essa idéia, pois é um tanto difícil explicar isso, já que a compreensão depende de muitas informações e correlações. No entanto, hoje, em minha mente, isso é bem visível.

 

            Participação do Grupo: Para mim também. Você pensa que Jesus era vegetariano?

 

            Orador: Se você pergunta para o Arnaldo, minha resposta honesta é que o máximo que eu poderia dizer é que isso é uma hipótese bastante provável. Agora, o que posso também dizer é que a Dra. Kingsford afirma que Jesus era vegetariano.

 

            Participação do Grupo: Algum tempo atrás compilei uma série de argumentos que apontavam na direção de que Jesus era vegetariano. Inclusive, com base em passagens bíblicas.

 

            Orador: Hoje podemos ir além e afirmarmos, como uma hipótese cientificamente provável, que Jesus era vegetariano, em virtude de sua relação com a comunidade dos Essênios, que eram, sabidamente, estritamente vegetarianos. Ou seja, não teria como pessoas como João Batista e como Jesus terem essa participação junto aos Essênios se não fossem vegetarianos. Isso é uma inferência histórica à luz das descobertas do século XX, como já disse, dos manuscritos encontrados em cavernas do Mar Morto e em locais do Alto Egito. Porém, se até o Papa está se valendo desses conhecimentos, com sua erudição e com seu tradicionalismo, então é algo que podemos aceitar como uma hipótese bastante provável.

 

            Participação do Grupo: As pessoas fazem esse tipo de pergunta justamente para contemporizar, para minimizar a importância do vegetarianismo. Qual a importância que esse fato tem para a consciência dessas pessoas em relação à necessidade de respeitar a vida de outros seres?

 

            Orador: De qualquer modo, é importante podermos afirmar que, ao contrário do que as pessoas pensam, com grande probabilidade Jesus era vegetariano. Há um texto que traduzimos, que está no Site Anna Kingsford, que se chama O Vegetarianismo e a Bíblia, escrito por Edward Maitland, onde ele mostra, à luz do Novo Evangelho da Interpretação, como não há dúvidas, para eles, de que Jesus era vegetariano. [Nota: Esse texto foi adicionado, ao final, como um dos Textos Complementares.] E também que a Bíblia, quando seus símbolos são interpretados misticamente, dá amplo suporte ao vegetarianismo. Mas para isso temos que entrar no conhecimento do Novo Evangelho da Interpretação e entender que praticamente todas as coisas importantes da Bíblia são alegorias, e que não podem ser lidas literalmente, como verdades históricas, mas que devem ser lidas como verdades escritas sob a forma de parábolas, alegorias e símbolos.

 

            Participação do Grupo: Não sei se vocês conhecem um livro psicografado chamado Maria de Nazaré, onde é relatado, de forma categórica e com riqueza de detalhes, que Jesus conviveu muito tempo com os Essênios. Isso no período que não está narrado nos Evangelhos, entre os doze e os trinta anos.

 

            Orador: Como disse, segundo o Novo Evangelho da Interpretação, praticamente todas as coisas de importância espiritual nos Evangelhos devem ser lidas como alegorias relacionadas com nossas almas.

 

            Participação do Grupo: O próprio fato de que os apóstolos eram pescadores. Mas vai daí, por exemplo, que as pessoas afirmam que eles comiam peixe.

 

            Orador: Se fizermos uma leitura literal, Jesus até mesmo multiplicou os peixes para que a multidão saciasse sua fome. Multiplicou várias cestas de pão e umas poucas que havia de peixes. Já referi em uma entrevista, que foi publicada na Revista dos Vegetarianos, que isso se trata de uma alegoria; que o peixe simboliza o conhecimento espiritual profundo, que se obtém no silêncio e no segredo, e o pão simboliza o conhecimento espiritual superficial, doutrinário, ou intelectual. Mas, aqui, como na maior parte dessa fala, estou tentando apenas repetir fielmente as idéias de Kingsford e Maitland.

 

            Participação do Grupo: Você fez algumas afirmações do tipo: – por que essas idéias não são conhecidas? Que nada é feito pela humanidade, ou melhor, que o caminho que ela tomou está conduzindo a um precipício.

 

            Orador: Desculpe interromper, mas desejo apenas esclarecer a afirmação que fiz. O que afirmei foi que a humanidade de nossos dias não possui os instrumentos, sobretudo em termos de instituições sociais, isto é, em termos de organização macro-social, principalmente em termos de organização política, para alterar esse caminho rumo ao precipício. Repito isso apenas para deixar claro a afirmação que foi feita.

 

            Participação do Grupo: Essa lembrança foi apenas para introduzir a pergunta que eu gostaria de fazer, que é a seguinte: considerando a existência desses Seres Iluminados que cuidam da evolução humana, me parece que a humanidade agora se encaminha, inclusive através desses ensinamentos trazidos pela Dra. Kingsford, para o Cristo Cósmico. Que ela se encaminha para uma expansão de consciência, vamos dizer assim, para então sair desse aperto em que nos encontramos, toda a humanidade, e evitar realmente esse iceberg que foi mencionado. Isso constituiria uma verdadeira redenção da humanidade. Pelo menos para aqueles que quiserem isso, que estiverem abertos para isso, se encaminhando para a luz. Então, chegando ao cerne da minha pergunta, é isso: não seria justamente esse conhecimento que não é dado para a humanidade – e que, portanto, seria como uma manipulação pelas religiões e filosofias que hoje são dominantes – o que manteria as pessoas sem esses conhecimentos?

 

            Orador: Estamos tocando em alguns pontos que considero cruciais. Cada um desses pontos, que foram tocadas por vários dos colegas aqui presentes, demandaria no mínimo algumas horas de conversa. E isso para cada um desses pontos. Você agora está tocando num ponto que não é fácil para as pessoas entenderem, pois elas estão sob as influências das idéias dominantes em nossa época.

            Estou investigando essa temática ao longo de vários anos. Nessa busca, como vários de vocês sabem, me aproximei da Sociedade Teosófica. E lá estive por vários anos. Tive a oportunidade de viajar pelo mundo e conhecer muitas coisas. Cheguei a ocupar cargos de liderança entre a juventude dessa organização. Pois bem, meus caros, posso dizer que é difícil entendermos os pontos que foram levantados por você apenas com o auxilio das idéias que são dominantes em nossa época.

            Por que razão os Grandes Seres não conseguem trazer, com todas as letras, uma filosofia e uma religião decentes para a humanidade?

            Na verdade, todos os Grandes Instrutores, ao longo de toda a história conhecida e também nos períodos pré-históricos desconhecidos, trouxeram praticamente a mesma filosofia, apenas com símbolos diferentes, para épocas e culturas diferentes. Porém, como disse Chardin: “tudo o que se eleva converge”.

            O que os Grandes Seres trouxeram uma e outra vez era praticamente o mesmo conhecimento, como pode ser atestado com facilidade através de um estudo comparado daquilo que foi trazido pelas grandes religiões.

            Por que é tão difícil a preservação dessa visão lúcida que todos os Grandes Seres de todos os milênios trouxeram? Por que a mensagem se perde, por que ela se idolatriza, por que ela se deteriora rapidamente?

            Percebem a importância dessa pergunta? Por que se faz essa grande deturpação? Pois bem, a contribuição que quero trazer para, quem sabe, auxiliar no entendimento – e que talvez seja das coisas mais importantes que devemos entender – é o fato que na humanidade as almas que compõem a família humana são mesmo como uma grande família e que, portanto, não tem todas as mesmas idades, a mesma maturidade psico-espiritual. Lembram da Parábola dos Talentos? Ela nos diz que naquele dia o senhor iria sair de viagem, chama seus servos e a um dá um talento, a outro dois talentos e a outro cinco talentos, a cada um segundo suas capacidades. Vamos relembrar a parábola:

 

         “Porque é assim como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes entregou os seus bens: a um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade; e seguiu viagem.

         O que recebera cinco talentos foi imediatamente negociar com eles, e ganhou outros cinco; da mesma sorte, o que recebera dois ganhou outros dois; mas o que recebera um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.

         Ora, depois de muito tempo veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles. Então chegando o que recebera cinco talentos, apresentou-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei. Disse-lhe o seu senhor: Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.

         Chegando também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos; eis aqui outros dois que ganhei. Disse-lhe o seu senhor: Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.

         Chegando por fim o que recebera um talento, disse: Senhor, eu te conhecia, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste, e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui esconder na terra o teu talento; eis aqui tens o que é teu. Ao que lhe respondeu o seu senhor: Servo mau e preguiçoso, sabias que ceifo onde não semeei, e recolho onde não joeirei? Devias então entregar o meu dinheiro aos banqueiros e, vindo eu, tê-lo-ia recebido com juros. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao que tem os dez talentos.

         Porque a todo o que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado”. (Mateus 25:14-29)

 

            Assim, quando o senhor retornou, tempo depois, cobrou de seus servos de acordo com a norma que diz que cada um deve contribuir de acordo com suas capacidades. Então, esse conhecimento de que as maturidades psico-espirituais são muito diferenciadas, embora todos sejamos irmãos, pois todos temos a mesma paternidade divina, é algo muito importante e que está presente em todas as grandes tradições. E é mesmo da maior importância essa visão, esse conceito de que constituímos uma fraternidade universal, uma irmandade universal.

            Durante a Revolução Francesa, os revolucionários tinham como lema: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. E se poderia dizer, embora de forma excessivamente resumida, que quanto aos princípios da liberdade e da igualdade eles tinham uma noção razoável. Agora, quanto ao princípio da fraternidade eles eram muito superficiais. O entendimento que eles tinham do princípio da fraternidade era de que as nações e os povos eram todos irmãos. Ora, visto apenas dessa forma superficial, esse conhecimento do princípio da fraternidade não se distingue do igualitarismo, isto é, da falsa concepção que todos temos capacidades semelhantes, senão praticamente iguais.

            E isso era a Fraternidade à luz da visão dos lideres da Revolução Francesa e que resultou no derramamento de sangue que sabemos. De fato, o princípio da fraternidade significa que nós somos todos irmãos. Significa, portanto, que todos temos igual valor, uma vez que todos temos o mesmo pai e a mesma mãe, porém, igualmente significa que os irmãos têm idades diferentes. E o princípio da fraternidade implica, necessariamente, nessa diversidade de capacidades, de talentos. E se não entendermos isso nós estaremos auxiliando a direcionar o Titanic no rumo do iceberg, isto é, estaremos contribuindo para o agravamento dos grandes problemas do mundo. Isso porque, se não entendermos isso, estaremos realmente perdidos, estaremos muito mal equipados em termos filosóficos e religiosos.

            A visão que temos de ser humano e de humanidade é simplesmente crucial. Uma sociedade é um grupo de seres humanos e, assim sendo, os modelos das grandes instituições organizativas das sociedades dependem, decisivamente, da visão que temos do que seja o ser humano e a família humana, a humanidade.

            A humanidade de nossos dias, conforme examinamos em outros escritos, tanto na área da política quanto da filosofia está dominada por idéias falsas, que são quase como dogmas de nossa época, baseados no igualitarismo. Baseados na crença falsa que as pessoas todas possuem capacidades muito parecidas. [Nota: A menção aqui feita, de outros escritos, diz respeito às obras O Que Há de Errado com a Política? e Teosofia e Fraternidade Universal, que estão, na íntegra, respectivamente, nos sites www.humanitarismo21.com e www.anna-kingsford.com.]

            E o fato marcante é que em nossos dias a humanidade não possui uma alternativa consistente, uma alternativa no campo das idéias para essas filosofias igualitaristas dominantes, que hoje são o Neo-Liberalismo e Neo-Marxismo. Fora disso o que temos? Ao longo de todo o século passado tivemos, além das idéias hoje dominantes, o Nazismo e o Fascismo. Esses, até certo ponto, reconhecem as diferenças, porém as usam de forma perversa, como justificativa para diferentes privilégios, seja de raça ou de classe social.

            Quanto maior for a capacidade de um indivíduo, maior tem que ser a responsabilidade imputada a esse indivíduo. A nossa ordem jurídica deveria reconhecer isso, essa maior responsabilidade daqueles que demonstram maiores capacidades. E isso deveria estar concretamente associado com a responsabilidade criminal dos indivíduos. Se o indivíduo possuir uma capacidade e um poder maior, a pena para os seus delitos deveria ser maior do que aquela imputada para os mesmos delitos dos de menor capacidade e poder, pois a gravidade do mesmo crime praticado por uma pessoa de grande capacidade e poder é muito maior.

            Enfim, como falei antes, o mundo de hoje está muito distante de uma visão decente, do ponto de vista macro-social. E como estamos distantes de uma visão decente, as instituições derivadas das visões dominantes são ainda coisas bárbaras. E por essa razão os problemas gigantescos de nossos dias não encontram soluções consistentes. Talvez isso não seja muito fácil de ser claramente compreendido, pois requer várias informações que geralmente estão faltando às pessoas, mesmo àquelas mais bem informadas. Porém isso em nada diminui a sua importância crucial.

 

            Participação do Grupo: Quero primeiro dizer que esse colóquio, organizado pelo Grupo Anna Kingsford, da Sociedade Vegetariana Brasileira, ocorre justamente na abertura das atividades da Semana Vegetariana. E, embora não conheça profundamente a obra da Dra. Anna Kingsford, quero me deter um pouco no vegetarianismo, que é um dos pilares da obra da Dra. Kingsford. E considerando que tudo que se eleva se complementa, uma vez que tudo que se eleva converge, quero relembrar que ela foi médica e que durante a sua formação acadêmica e científica procurou sempre defender a importância do vegetarianismo. E ainda que sua tese de conclusão do curso de medicina foi voltada para a questão do vegetarianismo. Ela foi uma das pioneiras na defesa científico-acadêmica da importância do vegetarianismo.

            Nós aqui estamos voltando nosso olhar para o alto, para o céu, e estamos aprofundando mais nas outras questões, uma vez que a Dra. Anna Kingsford era uma mística, considerada uma verdadeira profetiza, e recebia as intuições, as iluminações através de sonhos e de outras formas. Sobre esse ponto, talvez o Arnaldo possa nos falar mais. Pelo pouco que conheço, ela também nos indica que uma alimentação vegetariana favorece a nossa busca religiosa e a entrarmos em um verdadeiro relacionamento com os espíritos superiores, com a verdadeira espiritualidade.

            Quero aqui destacar uma passagem desse texto que foi hoje distribuído (Em Memória de Anna Kingsford), no qual, em uma de suas visões, ou iluminações, ela se deparou com três véus que foram chamados do Véu do Sangue, do Véu da Idolatria e do Véu da Maldição de Eva. O Véu do Sangue está muito relacionado com esse ponto da matança dos animais e, portanto, com o vegetarianismo. O Véu da Idolatria está relacionado com muitas coisas que foram ditas aqui, quanto à necessidade de não materializarmos e não fazermos uma leitura literal das Escrituras. E um terceiro véu que foi chamado de Maldição de Eva.

            No final da visão ela ouviu uma voz altissonante que disse:

 

         “Afastem o Sangue do vosso meio. Destruam os seus Ídolos. Restaurem sua Rainha. Adorem somente a Deus” [Clothed with the Sun (Vestida com o Sol), p. 3].

 

            Gostaria que o Arnaldo comentasse um pouco esses três véus.

 

            Orador: Agradeço muito essa contribuição. Ela, de fato, complementa o que procurei expor. Isso porque, embora eu não tenha deliberadamente planejado isso, nós tocamos nos dois primeiros véus.

            Quanto ao Véu do Sangue: – aqui nesse texto distribuído há uma passagem em que ela afirma que se a humanidade acha que vai encontrar a paz sem afastar suas mãos do sangue e da matança, ela está muito enganada, porque, se continuar assim, não irá alcançar a paz jamais.

            O vegetarianismo, uma alimentação que não implica em derramamento de sangue, sutiliza os nossos veículos. E as pessoas que quiserem realmente aprofundar esse processo de sutilização, que já não serão muitas, deverão optar por um vegetarianismo que é basicamente crudívoro. São afirmações dos escritos da Dra. Kingsford e de Maitland que estou apenas repetindo aqui.

            Quanto ao segundo véu: – trata-se da Idolatria, e é algo sobre o que falei bastante. Pelo menos dentro do que nos permitiu o tempo. Falamos das visões equivocadas que a leitura literal das Escrituras acarreta. Isso é a morte, como escreveu São Paulo, em primeiro lugar do entendimento, e na continuação dessa morte do entendimento vem, como conseqüência, a morte e a matança física.

            Então, esse é o Véu da Idolatria. Precisamos derrubar nossos ídolos das falsas interpretações. É isso que se quer significar pela destruição dos ídolos. Quando tomamos algo que é uma alegoria, um símbolo, e o dotamos de uma realidade histórica, literal, para o que ele nunca foi escrito, aí estamos criando um ídolo, um “Bezerro de Ouro”, como na alegoria do Velho Testamento. E dentro dessa matança se destaca, segundo a Dra. Kingsford e Maitland, a tortura dos animais nos laboratórios e nas salas de vivissecção. Segundo eles, esse é o crime mais hediondo que a humanidade pratica em massa, que é a voluntária e deliberada submissão dos nossos irmãos menores a uma indescritível tortura em nome da ciência, do avanço do bem estar humano, ou do que for.

 

            Participação do Grupo: Há um livro que passei há pouco para todos que fala exatamente sobre isso e como hoje temos a possibilidade de dispensar, por meio da utilização de outros métodos, essa tortura, esse crime bárbaro.

 

            Orador: Isso é algo muito importante, pois se trata de uma brutalidade, de uma crueldade imensa. A Dra. Kingsford que sempre combatia a morte nos matadouros, também nos dizia que a tortura é ainda muito pior. Que matar era uma coisa e que torturar era outra, e muito pior. Nós aqui, ao participarmos da Sociedade Vegetariana Brasileira, de algum modo estamos preocupados com essas coisas e procuramos evitá-las em nossas vidas e combatê-las no mundo em geral. Vocês têm razão que precisamos aprofundar ainda mais essa preocupação e essa luta começando pelo exemplo de nossas próprias vidas. Afastando de nossas vidas o sangue e também a idolatria.

            Lembro, no entanto, que ainda não comentamos o terceiro véu. Desse pouco falamos: – o Véu da Maldição de Eva. O que é essa Maldição?

 

            Participação do Grupo: Li ainda hoje a esse respeito. E isto seria a questão da alma ter caído na dualidade. Aí se encontraria essa questão da Maldição de Eva na alegoria bíblica. Suas palavras estão vindo bem ao encontro do que tenho lido essa semana.

 

            Orador: Quanto a esse terceiro véu, como você está sugerindo, precisamos mesmo adentrar a interpretação dos símbolos e das alegorias das Escrituras Sagradas. Poderíamos comentar o Novo Testamento sob essa ótica, mas vamos olhar o Gênesis, que você mencionou. No Novo Testamento aparece a figura de Maria e no Gênesis aparece Eva. O que é a Eva? O que é a Mulher na interpretação de nossa Escritura Sagrada? A Mulher simboliza a alma dentro do ser humano.

            O que é o Adão? O que é o símbolo do Homem nas Escrituras? Adão simboliza o nosso eu externo. O corpo, as emoções e a mente concreta. Todo esse conjunto – essa parte mais externa do ser humano – é representado pelo Homem. E a nossa Alma – a nossa mente abstrata e as nossas intuições – é representada pela Mulher.

            Então, todos nós, quando vistos desde uma perspectiva mística, ou religiosa profunda, todos temos em nós mesmos esse nível que é representado pelo Homem e esse nível que é representado pela Mulher. O ser humano masculino carrega esse Homem e essa Mulher das alegorias sagradas. O ser humano feminino igualmente carrega esse Homem e essa Mulher dos símbolos bíblicos.

            Então, esse nível em nós, no Gênesis, na alegoria, na parábola do começo da Bíblia, a Mulher em nós, é um símbolo que vem de muito tempo, que já foi recebido pelos antigos judeus, os quais trouxeram do Egito e de outros povos, como os da Mesopotâmia, esses grandes símbolos. São coisas muito antigas. Então, retomando o terceiro véu, a Mulher, a Alma dentro de nós, fica atraída pelo apelo dos sentidos, que é simbolizado pela Cobra oferecendo o Fruto Proibido.

            Assim, a Queda da Mulher em nós é a queda de nossas Almas, da Alma de cada um de nós, ao ficar atraída externamente para a materialidade dos sentidos, sobretudo a materialidade e a dualidade que foi referida, a dualidade criada por nossa mente concreta, que é como o “Rei dos Sentidos”. Nossa mente concreta é, por excelência, o Homem em nós, é a parte mais poderosa do Homem em nós – nosso pensamento concreto, esse que vê as imagens, que compara, que nos vê como coisa separada dos demais, e daí a dualidade, a separatividade – e que acredita na ilusão de que a separatividade seja a realidade. Vejamos a citação de uma obra clássica da literatura mística:

 

         “Aquele que quiser ouvir a voz de Nada, o Som sem som, e compreendê-la, terá de aprender a natureza do Dharana [Meditação].

         Tendo-se tornado indiferente aos objetos da percepção, deve o discípulo procurar o Rajá (Rei) dos sentidos, o produtor de pensamentos, aquele que acorda a ilusão.

         A Mente é a grande assassina do Real.

         Que o discípulo mate o assassino”. (A Voz do Silêncio, p. 45)

 

            Tudo isso é simbolizado pelo Homem dentro de nós, na alegoria da Escritura. Quando a Mulher dentro de nós cai submetida por esse nível externo, simbolizado pelo Homem em nós, isso se constitui na Maldição de Eva. Então temos que resgatar a Mulher, que restaurar a nossa Rainha, em todos os sentidos. Não apenas, e não principalmente, quanto aos direitos do ser humano feminino, por mais importante que isso seja, porém, sobretudo, na afirmação da Mulher, da Rainha dentro de nós, sejamos nós seres humanos masculinos ou femininos. Devemos resgatar a realidade e a vivência da Alma, da Mulher, dentro do ser humano. Isso significa o soerguimento da Mulher nas Escrituras, que está representado, entre outras ilustres figuras de Mulheres, principalmente por Maria. Desnecessário dizer que esse reconhecimento também traria, em conseqüência, o soerguimento da condição dos seres humanos femininos.

            Maria simboliza a restauração, a elevação, o soerguimento de Eva. Quando está escrito no Novo Testamento que Maria trouxe à luz o Menino Jesus sendo uma Virgem, o que isso significa? A Alma, a Mulher dentro de nós, ao trazer à luz a consciência espiritual, o Menino Jesus dentro de nós, ela o faz de forma pura, de forma não maculada, e o faz contando com uma paternidade divina, do Deus dentro de nós, e daí o símbolo do dar à luz Virgem, de forma não maculada pelo externo.

            É essa Eva, cuja realeza foi restaurada, que traz à luz o Menino Jesus dentro de nós. É ela que ao se voltar para o alto, para o divino, libertando-se do Homem, principalmente da dualidade da mente concreta, gera a Divina Criança da verdadeira consciência espiritual dentro de nós. Essa Criança Divina se desenvolve, se Transfigura até o ponto de entregar-se plenamente ao serviço dos demais filhos de Deus e, finalmente, se Liberta, Ressurge dos Mortos (aqueles que não estão vivos espiritualmente) e ascende livre, unindo-se à Glória do Cristo, do Deus em nós, retornando, de forma plenamente consciente, ao Reino de Deus.

            Por isso se diz que Maria (a Eva soerguida) é a Mãe daqueles que estão Vivos, ou seja, é a Mãe de todos que estão espiritualmente vivos. É importante aqui lembrarmos as circunstâncias do Nascimento do Menino Jesus, que se dá na simplicidade e entre os animais. Não é por acaso que os animais estão ali, cercando o Nascimento, cercando o parto da Eva soerguida, o parto de Maria trazendo à luz a consciência espiritual dentro de nós.

            Os animais estão ali simbolizando a necessária compaixão que precisa reconhecê-los e protegê-los como nossos irmãos menores. Nossos irmãos menores não são apenas os famintos, os doentes, os desamparados e os menos capazes do que nós, mas também todos os animais, todas as criaturas de Deus. Por isso o vegetarianismo é fundamentalmente importante. E vamos lembrar que isso são palavras desses profetas, da Dra. Kingsford e de Maitland, e não do orador nesse colóquio.

            Se iludem, diz a Dra. Kingsford – como antes já haviam dito Pitágoras, Buda, e tantos outros – se iludem aqueles que acreditam que podem alcançar a libertação se não afastarem suas mãos, se não purificarem suas mãos do sangue dos inocentes.

            Então, é em meio aos animais que nasce o Menino Jesus dentro de nós. E por quem é gerado esse Menino? Por nossa Alma soerguida, liberta, restaurada em sua realeza, que transcendeu os condicionamentos, sobretudo de nossas mentes concretas, que são os “reis” dos nossos sentidos, isto é, são por excelência o Homem dentro de nós.

            Em algumas tradições orientais, a Serpente simboliza a Sabedoria, a própria Sabedoria Divina e também Aqueles que alcançaram essa Sabedoria. Porém, na alegoria bíblica a Serpente simboliza o poder do inferior, do rastejante, do pensamento. Ou seja, o poder, sobretudo, do pensamento concreto que cria a dualidade a qual é simbolizada pelo Bem e o Mal, esse grande par de opostos. Esse pensamento que, como vimos, está qualificado em uma obra mística como o “Rei dos Sentidos” (A Voz do Silêncio, p. 45). Essa é a Maldição de Eva. A Alma que se tornou escrava desse que é o “Rei dos Sentidos”.

 

            Participação do Grupo: E como ela chega a essa cura, a essa Libertação?

 

            Orador: Chega a essa cura, alegoricamente, seguindo o exemplo de Maria. Quando falamos em Maria, quais são os valores que ela representa?

 

            Participação do Grupo: A entrega.

 

            Orador: A entrega a quem? Ao Homem dentro de nós?

 

            Participação do Grupo: A Cristo.

 

            Orador: Sim, a entrega é a Deus, ou ao Espírito Santo. Vem o Anjo e lhe diz que ela vai dar à luz. Ela se assusta e pensa, mas e o meu marido? E o José? É a oscilação da Alma, da Mulher em nós, temerosa de se libertar do Homem em nós.

            Que outros valores Maria nos evoca? A paciência, a doçura, o amor, a caridade, a longanimidade, a fé. Qual o verdadeiro sentido dessa palavra fé, que é tão mal compreendida?

 

            Participação do Grupo: Confiança total e irrestrita em Deus.

 

            Orador: Mas essa confiança total é gerada pelo que? Ela vem do que? Vem de uma sintonia. A palavra fé está ligada a fides, fidelidade, sintonia. Então, Maria tinha essa fidelidade, essa sintonia, essa entrega que lhe permitia ouvir o Anjo, o mensageiro de Deus – as intuições do Alto dentro de nós. A mensagem vinda do Alto. A sintonia que lhe permitia ouvir o mensageiro de Deus, o Arcanjo Gabriel, e entregar-se à Vontade Divina. Tudo isso são símbolos. É o divino chegando até nós. Como o divino pode se fazer presente, pode se tornar vivo em nós? Justamente através dessas qualidades que Maria representa nos Evangelhos.

            Há um momento de oscilação, mas finalmente a Alma, a Rainha restaurada, diz: “faça-se em mim a tua vontade”.

 

            Participação do Grupo: É a mesma coisa que Cristo disse na Cruz.

 

            Orador: Exatamente. Porém na Cruz temos a representação simbólica de um momento muito mais avançado na trajetória do desenvolvimento da Alma do ser humano.

            Quando do Nascimento estamos falando de uma etapa que é o inicio verdadeiro, o Nascimento, a entrada na corrente da vida eterna. Enquanto que na Cruz e na Ressurreição estamos vendo os símbolos de etapas muito posteriores, nas quais o Cristo, o Deus em nós, está se manifestando plenamente, como um Sol que está eclipsando as estrelas de nossos apegos e ilusões pessoais, e que brilha para todos numa Doação, num Sacrifício que alcança a Glória da Perfeição Divina e, assim, entra de forma consciente e permanente no Reino de Deus, no oceano da Luz do Amor Divino.

 

            Participação do Grupo: Há uma passagem no texto que foi distribuído que diz: “Pregai o Evangelho a toda criatura”.

 

            Orador: Isso é uma passagem que está nos Evangelhos, é uma frase bíblica. (Marcos 16:15)

 

            Participação do Grupo: É algo que coincide com a missão de Maria, com a missão de Jesus e creio que de todos os Avatares. Mas eu pergunto em que sentido teria sido usada essa frase: “Pregai o Evangelho a toda a criatura”? Isso teria alguma relação com esses Três Véus? Me parece que no final sempre resulta em assumirmos o bem como o único caminho. Você falou da purificação como o caminho para o divino. Será que você poderia resumir essa mensagem?

 

            Orador: Até onde posso ver, você já nos trouxe um resumo da mensagem. Não teria muito para acrescentar.

 

            Participação do Grupo: Mas quanto a essa parte de pregar o Evangelho a toda a criatura?

 

            Orador: O que a Dra. Kingsford e Samuel Hart, que foi o principal continuador de sua obra, estão tentando nos fazer ver é que o Evangelho, a Boa Nova precisa ser “levada”, isto é, precisa ter conseqüências práticas para toda a criação. E que isso engloba, necessariamente, nossos irmãos menores que são os animais, que são alcançados por essa expressão “a toda a criatura”. Foi isso que nesse contexto o autor quis dizer.

            A idéia que nos foi transmitida é que não podemos supor que iremos nos salvar sozinhos, deixando de nos preocuparmos com o bem-estar dos nossos irmãos, especialmente dos nossos irmãos menores, os animais. Eles nos afirmam que isso seria uma ilusão.

 

            Participação do Grupo: Isso seria como uma sintonia entre todos os reinos? O Menino Jesus, o homem Deus que nasce, está em perfeita sintonia com os animais.

 

            Orador: Como também estava, ou está em sintonia com os Reis Magos e com a Grande Estrela que os guiou, brilhando no céu. Mas, o Nascimento do Menino Jesus nos Evangelhos se dá entre os animais, o que procura evidenciar, sobretudo, essa irmandade com os animais e, portanto, essa necessária relação fraterna com eles e com o significado dessa expressão – “a toda a criatura”.

            Sempre relembrando que na alegoria do Nascimento do Menino Jesus o significado pretendido não é o do nascimento de um personagem histórico, que foi Jesus da Palestina, aquela manifestação desse grande Mestre. A alegoria não está se referindo a Este grande personagem histórico, ou, pelo menos, ao que tudo indica, não está se referindo apenas, nem principalmente, a um personagem histórico, por maior que Ele possa ter sido. A alegoria se refere, sobretudo, ao Nascimento do Menino Jesus dentro de nós, ao nascimento da verdadeira consciência espiritual dentro de nós. E essa, segundo o Evangelho da Interpretação, é a verdade simbolizada por essa passagem da Escritura.

            Se nos fixarmos naquele episódio histórico, cerca de dois mil anos atrás, isso já seria uma leitura literal, que leva à idolatria. Temos que nos afastar do segundo véu. Precisamos nos dar conta perfeitamente que os Evangelhos foram escritos para serem lidos de forma alegórica e que, nessa passagem, está representado o nascimento definitivo da espiritualidade verdadeira dentro de nós. Sendo que a culminância desse processo, que ali teve marcado o seu início verdadeiro, se dá na Cruz e na Ressurreição. Isso quando o ser humano, como disse, já adentra o Reino de Deus de forma consciente e permanente.

            Agradeço a presença de todos. Penso que esse encontro, ou esse Colóquio, como o chamamos, cumpriu seu objetivo.

 

            Participação do Grupo: Não teria muito que acrescentar ao conteúdo. Gostaria apenas de dar um depoimento de como o trabalho como tradutor desses textos me tocou. Eu colaboro com as traduções desses textos há alguns anos. Para mim foi uma oportunidade interessante, sobretudo, de conhecer o Cristianismo. Nós vivemos em uma sociedade onde a maior igreja é a Igreja Católica Romana. Portanto, numa sociedade cristã, na sua visão tradicional. Mas eu pouco conhecia dessa tradição e isso foi importante para mim. Quando nasci minha mãe estava ligada a uma religião oriental, então, embora vivendo em um país predominantemente cristão, eu cresci um tanto fora disso. Assim, para mim foi uma grande oportunidade.

            Um segundo ponto importante para mim foi a abrangência dos conhecimentos tratados, onde eu destacaria o vegetarianismo. A Dra. Kingsford não se preocupa em criar uma nova igreja, embora, no futuro, por extensão, isso possa surgir. Porém, ela destaca sempre a essência, a forma correta de interpretar.

            Eu já tinha uma simpatia pelo vegetarianismo. E, na verdade, o primeiro texto que traduzi tratava do vegetarianismo. O segundo texto no qual trabalhei foi para mim muito chocante, pois foi uma parte de uma palestra onde ela relata como a matança dos animais em rituais e a alimentação cárnea foi se estabelecendo a partir de rituais submetidos a influências sinistras.

            Ela apresenta algumas descrições desses rituais, e de como essa cultura pelos sacrifícios cruentos foi transplantada para o Cristianismo. Essa idéia tem continuidade na noção de um sacrifício realizado por Jesus para salvar a todos (sacrifício vicário). Ela faz uma análise disso mostrando que cada um de nós deve fazer o sacrifício do que é inferior em prol do que é superior, do que é passageiro em prol do que é permanente. E que tudo isso se refere ao Cristo em nós. Inicialmente, o despertar do Cristo em nós.

            Tudo isso me tocou muito. Senti isso com muita força e isso me ajudou na direção do vegetarianismo. Principalmente quando ela descreveu o tipo de energia com o qual nos associamos quando nos alimentamos com a carne. Isso para mim foi o mais chocante.

            E, por fim, um outro ponto muito forte é a idéia que ela nos apresenta da constituição do homem. Traduzimos um texto que se chama exatamente A Constituição do Homem. Convido a todos que leiam esse texto, pois é bem interessante. E esse texto e vários outros estão no site www.anna-kingsford.com.

            Nós brincamos que esse é nosso ofício monástico, como tradutores, numa pequena alusão ao trabalho dos monges que no passado preservaram obras importantes copiando e traduzindo.

            Posso dizer a vocês que devido à profundidade filosófica desses textos, trata-se de uma atividade que dá muito trabalho. Talvez o Marcus possa acrescentar alguma coisa, já que também colabora com esse trabalho por vários anos.

 

            Participação do Grupo: Penso que o Daniel já apresentou bem os principais aspectos desse trabalho. Estamos caminhando para completar esse trabalho de apresentação da grande obra da Dra. Kingsford e de seu colaborador Maitland. Destacaria apenas o fato da complementaridade entre o Budismo e o Cristianismo, pois essa união, que segundo a Dra. nunca deveria ter sido esquecida, apenas enobrece a obra desses grandes instrutores. Apenas pediria que o Arnaldo fizesse algum comentário acerca dessa reforma trazida por Kingsford e Maitland e se ela está muito longe do Cristianismo que vemos em nossos dias?

 

            Orador: Está ainda muito longe. Ao invés de fazer um comentário, trarei algumas citações dos próprios autores [vide citações nos Textos Complementares].

            Se nós partirmos dessa encarnação deixando na prateleira das idéias do mundo uma alternativa interpretativa, quer no campo religioso, quer no campo da filosofia social, penso que nós teremos servido à humanidade, nossos irmãos em geral, e aos Mestres de Sabedoria, nossos Irmãos Mais Velhos, de uma forma edificante, enobrecedora.

 

            Participação do Grupo: Talvez todos aqui saibam que está se construindo um projeto na área rural que se chama Fazenda São Columbano Roda e Cruz. Curiosamente, lá há um córrego que se chama Córrego do Meio que é um tributário do Rio São Bartolomeu. Córrego do Meio nos faz lembrar do Caminho do Meio, que faz referência ao Budismo, e São Bartolomeu ao Cristianismo. Hoje conversando com o Marcus, ele me contou que fez nesse mesmo local em que estamos realizando esse Colóquio um curso sobre Budismo. Também achei isso uma sincronicidade. Que essas coisas sejam de fato inspirações.

 

            Participação do Grupo: Quero solicitar a todos vocês que estudem a possibilidade de darmos continuidade a esse Colóquio, o transformando em algo permanente quanto aos estudos da mensagem aqui apresentada. Sinto muita necessidade de que algo assim aconteça e, de fato, gostei muito. Gostaria de aprofundar esses estudos, bem como de contribuir para que, de alguma forma, possamos auxiliar nessa direção as pessoas que se interessarem.

 

 

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