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COLÓQUIO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO

PENSAMENTO DA DRª. ANNA KINGSFORD

 

            Caros amigos, é uma alegria estar aqui nessa noite para realizarmos juntos esse colóquio.

            Todos que estão aqui já conhecem algo da mensagem da Dra. Anna Kingsford. Acho que não estou exagerando. Todos vocês já têm uma idéia da mensagem da Dra. Kingsford. Parece que o destino assim quis.

            Assim, não gastaremos muito tempo rememorando aspectos biográficos da vida da Dra. Kingsford, que, de qualquer modo, vocês já têm no texto que estão recebendo agora: “Em Memória de Anna Kingsford (1846-1888)” [vide Textos Complementares]. Esse texto nos dá um apanhado bastante elegante da vida da Dra. Kingsford e, naturalmente, da sua colaboração com Edward Maitland, seu grande companheiro de trabalho. É um texto escrito pelo principal continuador da obra de Kingsford e de Maitland, que foi Samuel Hopgood Hart. Ele também era inglês e também já é falecido.

            Então, vamos logo examinar a obra desses dois profetas e depois vou tecer comentários sobre a relevância de seus principais aspectos. Quase não vou falar da prática médica da Dra. Kingsford, que foi especialmente voltada para as mulheres. Na época quase não havia médicas e, em plena época vitoriana, as mulheres poderem se consultar com outra mulher, como vocês podem imaginar, era algo muito interessante. Isso ajudou que sua prática médica fosse bem sucedida, é claro. Ela nos deixou um livro nessa área, que, traduzindo, tem como título: Saúde, Beleza e o Toucador: Cartas de uma Médica para as Mulheres.

            Outro aspecto do seu trabalho foi aquele como uma lutadora pelos direitos das mulheres. Ela foi, sem dúvida, uma das pioneiras nesse campo. Se alguém tiver interesse nesse aspecto, há um texto no site, em inglês.

            Na verdade, nesse site – podemos dizer isso com alegria – estão todas as obras conhecidas de Anna Kingsford e de Edward Maitland, inclusive as obras de menor importância, como os poemas e estórias romanceadas da juventude da Dra. Kingsford, e os primeiros romances de Maitland, que são de menor relevância no conjunto dessa grande obra. Alguns desses textos eram muito raros. Eles estão ao dispor, agora, para o público em geral.

            A Dra. Kingsford lutou, no que diz respeito aos direitos das mulheres, principalmente, pelo direito das mulheres votarem. Como vocês sabem, lá em meados do século 19, as mulheres não tinham o direito de votar. Esse é um aspecto relevante de seu trabalho. Ela chegou a adquirir um jornal. Chamava-se O Jornal da Própria Mulher. Em inglês, The Lady’s Own Paper.

            Durante o período em que dirigiu esse jornal ela se tornou conhecida da elite pensante da sua época. Sobretudo das mulheres mais influentes da sua época, na Inglaterra.

            Uma outra faceta da obra de Anna Kingsford foi sua luta em prol do vegetarianismo, junto com Edward Maitland. Sobretudo, como lutadores contra a prática da vivissecção. Como ela costumava dizer: – matar é uma coisa, torturar deliberadamente é outra, e muito diferente.

            No texto que vocês estão recebendo, de Samuel Hart, ele esclarece de uma forma apropriada essa parte do trabalho de ambos. É um texto resumido, mas que parece bastante fiel.

            Toda essa parte do trabalho da Dra. Kingsford, embora estejamos em atividade dentro da semana mundial do vegetarianismo, vou tomar a liberdade de não comentar muito, especialmente por estarmos aqui como em família. É suficiente lembrarmos que ela é considerada por muitos como a Mãe do Vegetarianismo moderno.

            Um de seus livros foi uma adaptação da dissertação de conclusão do curso de medicina – lembrando que ela estudou na Universidade de Paris. Essa obra foi, que saibamos, a primeira tese defendida numa grande universidade em defesa do vegetarianismo. Se chamou De l’Alimentation Végétal chez l’Homme, ou seja, Da Alimentação Vegetariana para o Ser Humano. Depois ela foi traduzida para o inglês e publicada, com algumas adaptações, sob o título The Perfect Way in Diet (O Caminho Perfeito na Dieta).

            É um texto muito interessante até os nossos dias. Mas não podemos perder de vista que foi escrito em meados da segunda parte do século 19. Também é importante lembrar que foi muito difícil para ela defender essa tese. Como disse, o texto de Samuel Hart trata desse aspecto. Assim, se for de interesse, podemos voltar a esse ponto nas questões, comentários e contribuições.

            O quarto aspecto, que, particularmente, considero, de longe, o principal trabalho de sua vida, e da vida de Maitland, foi o trabalho dentro do que podemos chamar, em sentido amplo, de reforma religiosa. Sobretudo, no que diz respeito ao Cristianismo.

            Eles escreveram várias obras que tratam, principalmente, da correta interpretação dos símbolos do Cristianismo, como é o caso da principal, que se chama, em português, O Caminho Perfeito, que tem como subtítulo A Descoberta de Cristo. Em inglês: The Perfect Way, or, The Finding of Christ.

            Esse livro é composto de nove palestras com interpretações das doutrinas do verdadeiro Cristianismo – do que seria a verdadeira tradição, a autêntica teologia cristã.

            Naturalmente, se trata de algo muito diferente daquilo que vemos como dominante na religião e no mundo ditos cristãos. Seja o mundo cristão oriental, isto é, o mundo cristão dito ortodoxo – russo, grego, armênio e assim por diante – seja o mundo dito católico romano. Ou ainda, seja o mundo dito protestante, evangélico ou a denominação que queiram.

            A interpretação apresentada a respeito das Escrituras, sobretudo a Bíblia, mas que também pode ser aplicada a todas as Escrituras que contenham a Sabedoria Divina na tradição cristã – e, por analogia, até mesmo às Escrituras Sagradas de fora da tradição cristã – é não apenas pioneira para a época em que eles viveram, mas é até hoje, salvo melhor juízo, o que existe de mais consistente, de maior qualidade no mundo todo, dentro dessa temática.

            Então, qual a linha de minha principal argumentação? Como um resumo, há uma citação que diz: “No presente momento há duas coisas da religião cristã que devem ser óbvias para todas as pessoas de discernimento; a primeira, que os homens não podem viver sem ela; e a segunda, que eles não podem viver com ela assim como ela está” [Matthew Arnold, citado por Kingsford e Maitland no Prefácio para a Segunda Edição (Revisada) de The Perfect Way (O Caminho Perfeito), p. lxxi]. Essa frase é de um escritor inglês, do século 19, um poeta e crítico literário, que escreveu também obras de crítica religiosa.

            Então, gostaria de usar os minutos que disponho para tentar expor minha visão, com algumas considerações sobre a síntese contida nessa citação. Certamente, a maneira como leio, como entendo essa afirmação, não seria a mesma do escritor citado. Mas, quando interpretada à luz do pensamento de Kingsford e Maitland, julgo haver uma grande verdade nessa síntese, conforme procurarei expor.

            A primeira parte da citação parece algo sectário, parece algo de um cristão comum, afirmando que o mundo não pode viver sem o Cristianismo, porque sua religião seria a melhor, seria a única verdadeira, e assim por diante. Que sem o Cristianismo todos estariam no equívoco, distantes do caminho, da verdade e da vida, como costumam interpretar essa passagem do Novo Testamento.

            Evidentemente, minha visão está muito distante disso. O que vejo é que o Cristianismo, para o bem ou para o mal, é – juntamente com o pensamento cientificista moderno e contemporâneo – a principal fundamentação da civilização ocidental. E que o Ocidente, por sua vez, hoje domina o mundo, amplamente.

            Dou um exemplo. Estive algumas vezes na Índia, e achei muito impressionante a velocidade com que aquele país está se ocidentalizando. Isso é mesmo impressionante no caso da Índia porque é um país, tradicionalmente, em sua cultura hinduísta, contrário a tudo que vem de fora, até preconceituosamente, em muitos casos.

            Então, como é muito claro, a civilização ocidental está dominando cada vez mais amplamente. Para o bem e para o mal, como disse. Não se trata de um juízo de valor, mas apenas de uma simples constatação, que nenhum indiano culto negaria, por mais conservador que fosse.

            É mesmo algo impressionante o que está acontecendo. Trata-se de uma cultura multi-milenar que pouco tempo atrás era muito adversa aos valores de fora. Até por sua história de combate, de lutas contra o colonialismo. Ainda assim, especialmente nas últimas décadas, e nos últimos anos cada vez mais, está se ocidentalizando de forma muito rápida. Algo análogo ocorre na China, como já ocorreu antes no Japão, e assim por outros tantos lugares no Oriente.

            Ora, se é verdade que o Cristianismo é a principal tradição filosófico-religiosa que está na base da civilização ocidental – sem ignorar as influências greco-latina e judaica e, na modernidade, o pensamento cientificista – então, o principal alicerce dessa civilização está claramente na tradição cristã, ou nisso, pelo menos, que é chamado de Cristianismo.

            É algo lógico – ao menos para a mente de alguém que vê a civilização sempre estando fundamentada em tradições filosófico-religiosas – que não tem como o mundo de nossa época viver sem o Cristianismo. O mundo que hoje aí está, com suas principais estruturas, para o bem ou para o mal, vive sob a influência avassaladora da civilização ocidental, a qual tem seus alicerces, tem suas bases, em grande medida, no Cristianismo.

            Assim sendo, interpreto dessa forma a primeira frase do escritor inglês de que não há possibilidade do mundo viver sem o Cristianismo. Querendo ou não, em nosso tempo, não tem como o mundo viver sem a civilização ocidental, como é óbvio. Então, também não tem como viver sem o Cristianismo, para o bem e para mal, repito mais uma vez, pois isso tem seus aspectos benéficos e seus aspectos nocivos.

            Já na segunda parte da citação, o escritor inglês afirma que não é possível viver com o Cristianismo assim como ele está. Aqui estamos diante de algo mais complicado. O escritor tinha suas visões sobre a degeneração do Cristianismo e sobre a necessidade de olharmos o Cristianismo criticamente, com coisas que vemos até hoje, como os escândalos no clero, ou como a crescente superficialidade no afã de manter os fiéis, e assim por diante. Novamente, nossa interpretação é diferente e está distante dessa visão.

            Para alguém que procura interpretar o estado do Cristianismo à luz do Evangelho da Interpretação, que é o nome dado à mensagem trazida pelos profetas que foram Kingsford e Maitland, a situação é muito mais grave.

            Segundo eles, quase todo o Cristianismo que vemos no mundo é o resultado de uma grande degeneração em relação ao que seria o Cristianismo verdadeiro. E essa degeneração estaria centrada em interpretações materialistas e idólatras, ou seja, seria a história de uma leitura literal e grosseira das Escrituras e da mensagem do Cristo Jesus.

            Então, a tese principal que esses profetas nos trazem em sua mensagem – por isso mesmo denominada de o Novo Evangelho da Interpretação – é que todas as Escrituras Sagradas, e não apenas as Escrituras cristãs, porém praticamente todas as Escrituras Sagradas do mundo, são grandes parábolas e não podem ser lidas literalmente. Isso está bem em sintonia com a frase do Apóstolo quando ele escreveu que a letra mata, mas que é o espírito – isto é, a luz, o amor e a inteligência do espírito – que vivifica (2 Coríntios 3:6).

            Como um simples exemplo de algo de fora do Cristianismo, apenas para facilitar a visualização, pensemos no Bhagavad Gita (Sublime Canção). Essa obra maravilhosa precisa ser lida como uma bela e profunda alegoria, e jamais de uma forma literal. Jamais de uma forma historicista, porém de uma forma alegórica. Pois, de fato, é uma grande alegoria, ou “parábola”. A Sublime Canção precisa ser lida de uma forma simbólica. E tudo depende da forma como forem interpretados os versos dessa Sagrada Escritura. E assim também com quase todas as demais Escrituras.

            Ali temos, como pano de fundo, um combate, uma guerra. Sri Krishna, o cocheiro, e o príncipe Arjuna estão se preparando para uma grande batalha na qual, no campo oposto, estão os parentes do príncipe, os quais usurparam o trono. E toda a Sublime Canção é um diálogo entre o cocheiro, o Divino Instrutor, e o discípulo. O discípulo que está buscando a verdade, o caminho e a vida verdadeiros.

            Se formos ler literalmente aqueles versos sagrados, como muita gente nesse mundo faz, estaremos espiritualmente “mortos”. Como disse o Apóstolo, e repito, a letra mata, mas o espírito (a compreensão) dá a vida (2 Coríntios 3:6). A leitura literal dá primazia à forma, faz uma interpretação rasa, materialista, e assim dá à forma uma importância que ela jamais poderia ter. Isso se constitui numa verdadeira adoração da forma, do ídolo, do símbolo, em resumo, no pecado devastador, realmente mortal, da idolatria. Essa materialização da verdade espiritual “mata” primeiro espiritualmente e, depois, fisicamente, com o derramamento de sangue.

            Porém, se as Sagradas Escrituras forem interpretadas como alegorias, como parábolas, como símbolos, como no exemplo trazido do Gita, mas que poderia ser a nossa Bíblia, do Gênesis até o Apocalipse, ah, que diferença! Tudo muda. Então, a carruagem tem um significado, o cocheiro tem um significado, os cavalos têm um significado, o campo de batalha tem um significado, todos claramente alegóricos. Como uma bela parábola, como belos símbolos. Sendo que algo exatamente análogo ocorre com as Sagradas Escrituras do Cristianismo.

            Adão, o Barro, o Sopro, Eva, a Costela de Adão, a Árvore no centro do Paraíso, a Serpente e tudo o mais, tudo, tudo, passando pelos Quatro Rios do Éden, pela Espada Flamejante dos Querubins guardando o caminho para a Árvore da Vida – todos esses são símbolos. E como tal precisam ser interpretados. E podemos seguir em frente com Caim, Abel, o Dilúvio, a Arca, tudo isso são símbolos que precisam ser interpretados.

            A vida dos profetas no Velho Testamento, assim como o Egito, o Deserto, o Rio separando o Deserto da Terra Prometida, e a própria Terra Prometida, entre tantos outros, são símbolos, são ensinamentos alegóricos que, necessariamente, devem ser interpretados. E não lidos de forma literal, ou idólatra.

            E quanto ao Novo Testamento? É exatamente a mesma coisa. A vida de Jesus nos Evangelhos é quase inteiramente simbólica. Portanto, em hipótese alguma, pode ser lida de forma historicista, de forma literal, como se tivesse ocorrido fisicamente como tal, pois isso mata. Mata, repito, primeiro espiritualmente, e depois fisicamente, gerando a mortandade e o derramamento de sangue que parecem não ter fim.

            Os historiadores demonstram inúmeras contradições e inconsistências nas passagens bíblicas, quer no Velho, quer no Novo Testamento. Aqueles que podem ver nos planos invisíveis nos relatam que, de fato, a verdadeira vida de Jesus foi muito diferente do que está nos Evangelhos. Apenas alguns fatos teriam correspondência histórica.

            A maioria das passagens dos Evangelhos seriam, como nos expõe o Novo Evangelho da Interpretação, alusões simbólicas e alegóricas, como belas parábolas, em perfeita analogia com o que exemplificamos do Bhagavad Gita. E assim deveriam ser lidas, se quisermos a vida ao invés da morte espiritual, e a conseqüente matança e derramamento de sangue.

            Esses ensinamentos alegóricos foram escritos por discípulos do Cristo Jesus, seguindo a orientação do Mestre, para servirem como as bases de um novo momento civilizatório, como os alicerces de um novo capítulo da história.

            Quanto ao Apocalipse, nem precisaria falar, pois está todo composto de claras alegorias, de símbolos do começo ao fim. Não há como lermos o Apocalipse de outra maneira. Porém, como disse, o mesmo ocorre com o Gênesis, com os Profetas e com os Evangelhos.

            Assim, esse é um dos pontos principais da mensagem da Dra. Anna Kingsford. Além disso, há toda a questão da interpretação. O que significaria Adão? E também Eva, a Árvore e a Serpente? O que significaria a Virgindade de Maria, ou seja, o dogma da Imaculada Conceição? O que significaria o próprio Jesus? O que significaria a Cruz, o Sangue e a Água que verteram do Coração de Jesus? Ou mesmo a Lança que perfurou seu Coração? E assim por diante. O que significaria a Crucificação, o Descer aos Infernos ao Terceiro Dia, ou, ainda, a Ressurreição?

            Quando começamos a pensar desse modo, começamos a respirar outro ar. Se for verdade essa hipótese da necessária interpretação, e levando em conta o primeiro aspecto já mencionado, que, para mim, como um cientista social, é algo muito claro, isto é, que o mundo não pode viver sem o Cristianismo, começa a também ficar claro que o mundo não pode viver com o Cristianismo da forma como ele está.

            Queiramos ou não, dominando o mundo, está aí o Cristianismo idólatra, junto com o Brutus, o filho ingrato do cientificismo materialista. Como vimos, são essas as bases filosófico-religiosas da civilização ocidental. Civilização ocidental que está dominando o mundo. Então, não há como negarmos. Não há como o mundo viver sem o Cristianismo, para o bem ou para o mal.

            Agora, o domínio avassalador da civilização ocidental está conduzindo o mundo, claramente, para grandes catástrofes. Estamos gerando problemas gigantescos para os quais não temos soluções. Então, assim como não há como viver sem o Cristianismo – aceitando a hipótese, para nós óbvia, da necessidade da interpretação das alegorias sagradas – o mundo também não pode viver com o Cristianismo como ele está.

            Se tivermos tudo isso em mente, a relevância da mensagem de Kingsford e Maitland salta aos olhos. Uma importância que, como vemos, através da civilização ocidental, está ligada ao bem estar, está ligada à situação do mundo como um todo.

            Em primeiro lugar, até onde podemos ver, ninguém escreveu sobre essa temática de reforma e interpretação do Cristianismo melhor do que eles – sem falar no seu pioneirismo.

            Temos aqui algumas obras importantes de outros autores para mostrar a vocês. Obras e autores que considero muito bons, como a Senhora Helena Blavatsky, com vários textos importantes como O Caráter Esotérico dos Evangelhos, traduzido pela amiga Marly Winckler, ou passagens relativas ao Cristianismo e ao Cristo Jesus da Doutrina Secreta; ou, então, como a Dra. Annie Besant, com sua obra O Cristianismo Esotérico, que é muito boa. Também a Senhora Alice Bailey, que escreveu, por exemplo, a obra De Belém ao Calvário, outra obra importante e muito boa. Mas, lembremos que foram obras escritas depois das obras de Kingsford e Maitland. Temos ainda Charles Leadbeater, com, entre outras, a sua obra A Gnose Cristã, obra igualmente muito boa. Conheço todas essas obras, porém, as obras de Kingsford e Maitland me parecem superiores, quer em qualidade, quer em relevância, por mais importantes que sejam as obras e os autores referidos. Refiro-me, sobretudo, à qualidade interpretativa.

            Kingsford e Maitland se concentraram nesses temas, não dispersaram o foco escrevendo sobre muitos outros aspectos. E, sendo também discípulos e grandes místicos, como os demais citados, é natural que a densidade, a qualidade e a abrangência de suas obras sejam maiores, no que tange a esse particular aspecto de interpretação das Escrituras cristãs.

            O fato é que, em termos de importância, até onde posso avaliar, dentro da temática da reforma do Cristianismo – que foi, por excelência, o trabalho e a missão desses grandes profetas – a obra de Kingsford e Maitland não tem par.

            A relevância da obra desses autores é imensa. E é de ficarmos pasmos com o fato de serem tão pouco conhecidos. Isso não é um elogio à inteligência de nossa época.

            A não ser que a visão desse orador esteja bastante equivocada, estamos diante de uma mensagem que hoje, mais ainda do que ontem, é da maior relevância para os assuntos da humanidade como um todo. Bem, pelo menos temos para pensar o fato de que se trata da visão de um economista pós-graduado, mestre em ciência política, bastante viajado, e não apenas a opinião de uma pessoa crédula, que acredita facilmente nisso ou naquilo.

            Buscando resumir, há um primeiro ponto no qual a visão desse orador não traz nada de original. Esse ponto é que podemos ter como sólida hipótese que o mundo hoje se encontra em uma trajetória que nos lembra o célebre Titanic. Assim, o mundo segue em direção a um tipo de iceberg, alegoricamente, é claro, rumando para grandes catástrofes. E, em segundo lugar – aqui já é um pensamento mais original do orador – o mundo nem sequer dispõe dos instrumentos para sair dessa rota de colisão, ou seja, para escapar dos grandes desastres que está semeando.

            Em nossos dias há muitas pessoas falando que o mundo está próximo de grandes episódios catastróficos, com desastres naturais, com pandemias e com o agravamento do quadro social, do terrorismo ou de guerras. Como disse, até aqui nada original. Apenas que não estou falando com base em informações místicas, mas como um cientista que examina causas e conseqüências observáveis. Que faz uma análise baseada, pelo menos em grande medida, em informações e dados experimentais – como em minha dissertação de mestrado, e em minha introdução ao Humanitarismo, que tem o título de O Que Há de Errado com a Política? Assim, estou falando como um cientista, que olha o mundo e analisa com base em dados experimentais, e que percebe crises muito graves se aproximando.

            Estamos falando de crises que há milênios não temos. Talvez não tenhamos crises como as que se aproximam desde os tempos da velha Atlântida, quando, segundo as tradições místicas, teria ocorrido o afundamento de grandes ilhas, com todas as suas conseqüências.

            Essas grandes calamidades podem não ocorrer num prazo curto, como alguns imaginam. Mas, seja como for, parece claro que estamos semeando um futuro desastroso, que estamos indo em direção a coisas muito graves. Talvez com aspectos inéditos, com intensidade diferente, mas de muita gravidade. Isso pode demorar, porém, se não mudarmos o que estamos semeando, a Grande Lei nos ensinará, mais uma vez, pelo caminho da dor.

            Nesse momento – aqui a afirmação é minha – nem sequer dispomos dos instrumentos para evitar essas grandes crises. Repetindo que falo como um cientista que pretende observar, analisar e, até certo ponto, mensurar esses desenvolvimentos com base em dados experimentais, e não apenas com base em percepções psíquicas ou para-normais, verdadeiras ou não.

            Explicar essa afirmação, da inexistência sequer dos instrumentos para evitar tais catástrofes, talvez demandasse uma outra exposição e não disponho desse tempo. Mas fica registrada a afirmação. Quem já conhece meus escritos sabe o que está fundamentando essa afirmação. Quem não conhece pode, se for o caso, usar o tempo do colóquio para questionar isso, para aprofundar essa visão, pois, se houver interesse, temos algum tempo para isso.

            Para mim, contudo, é algo muito claro que o mundo hoje não dispõe dos instrumentos de organização social e política para evitar essas catástrofes. Somente com novos instrumentos de organização social e política teríamos alguma chance de evitar tais crises. E como, praticamente, nem sequer existe na prateleira das idéias sociais do mundo de hoje esses instrumentos, muito menos esses instrumentos existirão em termos concretos. Assim, se isso for correto, então a conclusão se faz lógica e necessária, e estamos seguramente rumando para grandes crises. Se quiserem, repito, depois podemos aprofundar um pouco mais esse ponto.

            Faço essa afirmação com absoluta clareza, pois vejo essas coisas como estou vendo esse gravadorzinho aqui ao meu lado. É algo bem claro para mim. Naturalmente, isso não é ponto nem um pouco claro em termos gerais, isto é, se considerarmos a maioria das pessoas. Seja como for, precisamos avançar na análise e observar que para termos alguma chance quanto ao advento dessas novas instituições (que nos permitiriam alterar o rumo da colisão com o iceberg das grandes crises), para que elas possam chegar a ser algo de concreto nesse mundo, nós precisamos de uma nova base civilizatória.

            E, se falamos de base civilizatória, estamos falando de filosofia religiosa. Necessariamente. Será que não poderíamos ter uma base civilizatória materialista, como o Marxismo-Leninismo? Podemos. Mas, se formos examinar, isso não passa de uma filosofia de categoria inferior. Ou seja, essa base não seria nada mais do que uma filosofia pobre, que tenta fazer o que uma filosofia religiosa faz. Posso falar isso com tranqüilidade, pois fui marxista. Essa foi uma parte de minha trajetória nessa encarnação, e sinto gratidão por isso, pelo meu caminho como marxista.

            Assim, estou falando de algo que conheço razoavelmente. Se estou afirmando que é uma filosofia limitada é porque hoje eu percebo isso claramente. Tal filosofia nos levará, como já o fez, a um agravamento da barbárie vigente, e não às soluções, às novas instituições tão urgentemente necessárias. Já vimos um pouco dos resultados dessa filosofia materialista nesse século que passou. Não digo que ela não tenha aspectos positivos. Já disse que sou grato pelas coisas que ela me ensinou. Porém, digo que esses aspectos positivos estão também colapsando porque os aspectos nocivos são em maior número.

            Então, hoje o mundo está dominado por duas constelações de idéias, duas molduras interpretativas, onde, no momento atual, uma delas já se tornou amplamente dominante. Refiro-me, é claro, ao Liberalismo e ao Marxismo, com o amplo domínio atual do primeiro.

            Sempre é bom iniciar uma análise dessas filosofias relembrando que o mundo tem uma dívida de gratidão para com elas, apesar dos pesares. Isso porque elas venceram o Nazi-facismo, que era uma constelação de idéias ainda muito pior, com instituições ainda muito piores. Elas nos salvaram de uma barbárie ainda maior do que a que vivemos. Mas, por outro lado, hoje elas estão conduzindo o mundo a uma situação catastrófica, que se aproxima, mais cedo ou mais tarde.

            Aqueles que me conhecem a um bom tempo sabem que não costumo errar nessas questões. Posso não saber o momento preciso em que irão ocorrer, mas não costumo errar. Estamos semeando catástrofes, e isso colheremos. Elas virão como guerras e violência, como enfermidades pandêmicas, como cataclismos ditos naturais, e como sabe Deus mais o que. Podem vir cedo ou tarde, mais anos ou menos anos, mas tudo indica que virão. Pobres de nós, tão orgulhosos de nossos computadores, nossos satélites, nossos telescópios e microscópios, mas não sabemos ainda como viver em harmonia, como evitar tais catástrofes que estamos gerando.

            As instituições que vemos operando em quase todo o mundo de hoje são influenciadas por essas duas tradições filosóficas. Atualmente, como é evidente, com o domínio amplo do Liberalismo. As constituições dos países dominantes e da maioria dos demais, como no caso do nosso país, são constituições influenciadas pelo Liberalismo, ou por um Liberalismo modificado, que podemos chamar, por isso mesmo, de um tipo de neo-liberalismo. Se somarmos esses países, chegaremos a uma ampla maioria do poder mundial.

            Ora, isso é o produto, o resultado, de toda essa civilização ocidental. E a outra pseudo-alternativa, agora menos influente, que é o Marxismo, também é produto dessa mesma base civilizatória. Essas são, claramente, as principais janelas interpretativas do mundo. Fora disso, o que mais temos no mundo de hoje? Algumas monarquias religiosas, sobretudo islâmicas, alguma república de aiatolás, e é esse o quadro, muito pouco restando, em termos de opções práticas para as grandes sociedades. Vocês podem perceber a pobreza das idéias do mundo de hoje? E a conseqüente gravidade da situação em que o mundo se encontra?

            A globalização, que tanto se fala, significa um predomínio quase universal, quase global, do Liberalismo. Nesse mundo do pós Guerra Fria esse é o quadro. Aqueles que me conhecem há vários anos devem lembrar que antes do colapso da URSS já falava que o conflito Leste-Oeste não era o mais importante, mas sim o conflito Norte-Sul. Que o Liberalismo e o Marxismo estavam muito mais próximos do que se pensava, e que o conflito dito Norte-Sul, entre as nações ricas e industrializadas e as nações pobres, esse sim era importante. Com o colapso da antiga União Soviética, o devir histórico demonstrou o quanto eu estava correto.

            Então, para concluir e resumir, a frase do escritor inglês talvez agora ganhe um outro sentido, e possamos compreender melhor esse aspecto aqui trazido, das razões porque o mundo não pode viver sem o Cristianismo, para o bem e para o mal. Pois esse Cristianismo é uma das colunas fundamentais, por assim dizer, que dá sustentação à civilização ocidental, e essa domina hoje, ampla e crescentemente, o mundo todo. E, em sua segunda parte, talvez possamos agora refletir melhor no fato que da forma como está a civilização ocidental – conduzindo o Titanic para o iceberg – o mundo não pode continuar. Ou seja, o mundo não pode continuar com o Cristianismo e com a base civilizatória do Ocidente da maneira que estão.

            Esse falso e degenerado Cristianismo, que de cristão tem muito pouco, com a cruel civilização que nele está, em boa medida, fundamentada, está levando o mundo diretamente para o iceberg. O mundo cheio de orgulho de suas conquistas inegáveis, bem como na alegoria do Titanic, com seus orgulhosos engenheiros. Esse Titanic das catástrofes sociais e ambientais que se aproximam é criação do Cristianismo que aí está e de seu filho ingrato, o Brutus do cientificismo materialista, pois são principalmente eles que fundamentam esse modelo de civilização, com suas incompetentes, arrogantes e cruéis instituições jurídicas, políticas, educacionais e econômicas.

            Tudo isso, evidentemente, somente ressalta a imensa importância das obras e da mensagem da Dra. Kingsford e de Maitland, que são, como disse antes, os principais profetas modernos do verdadeiro Cristianismo. Um Cristianismo dentro do qual o mundo possa ter novas e bem fundadas esperanças. Não esperanças baratas e superficiais, como a de um conhecido que outro dia me afirmou estar citando Einstein ao dizer que preferia estar errado sendo otimista do que estar certo sendo pessimista. Ora, não sei se Einstein falou isso, mas é evidentemente melhor estar certo, é melhor ver as coisas como elas são, sendo lá o que tiver que ser, otimista ou pessimista, isso pouco importa. Como nos ensinam os verdadeiros sábios, é a verdade que nos liberta e, assim sendo, também é ela que pode nos dar real esperança.

            Estou ao dispor para ouvir suas considerações e espero que aproveitem essa oportunidade com inteira liberdade e sem qualquer receio, para contribuírem nesse trabalho com seus questionamentos, críticas ou aprofundamentos.

 

 

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