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Tradução: Daniel M. Alves

Revisão e edição: Arnaldo Sisson Filho

[Embora o texto em inglês seja de domínio público, a tradução não é. Esse arquivo pode ser usado para qualquer propósito não comercial, desde que essa notificação de propriedade seja deixada intacta.]

 

 

(p. 73)

CAPÍTULO XXIX

 

SOBRE A REDENÇÃO VICÁRIA (1)

 

            ESTAVA durante o sono na varanda de uma casa. Era noite, e uma noite tão densa, escura e impenetrável que nem a terra, nem as estrelas, ou qualquer outro objeto podia ser visto. No entanto, ainda que eu não soubesse onde estava, tinha consciência de estar dentro ou muito perto de uma cidade.

            E observei, flutuando na escuridão, pequenas línguas de fogo

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que tinham exata semelhança com a chama de uma vela. Elas se moviam como se fossem criaturas vivas que controlavam seus movimentos com inteligência e vontade. Elas diminuíam e aumentavam e passavam através do ar em todas as direções, e nada além delas era visível, tão intensa era a escuridão.

            Enquanto observava as chamas, duas delas vieram flutuando em minha direção e, entrando na casa, deslizaram ao redor da sala e então retornaram a mim na sacada, pararam e pousaram sobre minhas mãos, ficando ali por uns instantes. Então todo a cena sumiu e aconteceu o seguinte.

            Vi uma criança, um garoto na escola, que achou que foi tratado injustamente pela zeladora da escola, a qual o perseguia e oprimia severamente. Ele foi à sala em que ela estava sentada e, enfurecido, quebrou e destruiu tudo em que conseguiu pôr as mãos. E a explosão repentina de sua raiva o fez parecer com alguém possuído. Ele derrubou vasos bonitos no chão, pisoteou as flores e rasgou em pedaços valiosos tecidos, pois a sala era mobiliada e decorada de uma forma pomposa e cara. E então ele subitamente se voltou para a mulher, e puxando-a pelo cabelo, bateu nela e rasgou suas roupas, arranhou suas mãos e seu rosto. E tudo o que ela fez em sua defesa foram algumas poucas palavras de protesto. Eu estava chocada e horrorizada, pensando que ela estava morta, e imaginei o que seria daquela criança que tinha a fúria de um animal selvagem e a força de um homem.

            Então, pouco depois, vi uma jovem garota, a filha da mulher que tinha sido atacada daquela maneira. Ela estava ajoelhada diante de uma fornalha e observando algo nas chamas. Ela se virou, olhou para mim e disse: “A punição devida a essa criança é terrível, e dela não se pode escapar. Ele está condenado a ser marcado com ferro em brasa nas palmas das mãos, e depois ser expulso da escola. As marcas estão agora sendo aquecidas na fornalha”.

            Ao dizer isso, ela se voltou novamente para a fornalha e com uma vara tirou o ferro e se marcou em cada uma das mãos. E vi a carne se enrugar com o calor. Em seguida, ela ergueu as palmas de suas mãos em minha direção e disse: “Veja e leia o que está escrito nelas.” Li, em cada uma das mãos, a palavra “Culpado” marcada a fogo na carne. “E agora”, disse ela, “deixarei essa casa, meu lar, pois eu fui banida.” “Você!”, gritei, “você não é a culpada! O que é que você fez para merecer isso? Não compreendo”.

            Ela respondeu: – “Eu lhe disse que a punição devida ao garoto

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não pode ser evitada. E eu a trouxe para mim mesma, por minha própria vontade, embora eu seja inocente e seja a filha amada daquela pessoa que foi ofendida e maltratada de forma tão dolorosa. Tal como ele teria sido marcado, eu fui marcada. E tal como ele teria sido expulso, eu fui expulsa. Assim eu o redimi. Eu sofri por ele. A justiça foi satisfeita e ele está perdoado. Isso é Redenção Vicária”.

            Então, enquanto ela dizia essas palavras, um vento soprou em meu rosto, e eu o inspirei, e sendo inspirada, assim falei, em voz alta:

            “Ó tola, imaginar que a justiça pode ser satisfeita pela punição do inocente no lugar do culpado! Ao invés disso, trata-se de uma dupla violação. Como, ao marcar as suas próprias mãos, você pode salvar a criança? Não declarou a Palavra de Deus que “Nenhum homem assumirá o pecado de outro, nem ninguém redimirá [de forma vicária] a falta de seu irmão; mas cada um será responsável pelo seu próprio pecado, e será purificado através da sua própria punição”. E, também, não está escrito “Sede vós perfeitos”? [Mateus 5:48] E como ninguém pode se tornar perfeito a não ser pelo sofrimento, como pode alguém se tornar perfeito se um outro carrega o sofrimento em seu lugar? Tirar o seu sofrimento é tirar os seus meios de redenção, e roubar-lhe sua coroa de perfeição. O menino não pode ser perdoado se você assumir sua punição. Somente se com o próprio sofrimento se arrepender ele pode receber o perdão. E assim é com o homem que peca contra o Criador, violentando sua intuição e profanando o templo de Deus. O sofrimento do Próprio Criador por ele, longe de redimi-lo, iria tão somente privar-lhe de seus meios de redenção. E se alguém disser que Deus assim ordenou, a resposta é: “Justiça em primeiro lugar, e o Senhor Deus vem em seguida”! Mas apenas através da perversão criada pela ignorância pode uma doutrina dessas ser acreditada. O Mistério da Redenção ainda está para ser compreendido.

            “Assim é aquele Mistério. Não há tal coisa como uma Redenção Vicária; pois ninguém pode redimir o outro através do derramamento de sangue inocente. O Crucifixo é o emblema e o símbolo do Filho de Deus, não porque Jesus derramou seu sangue na cruz pelos pecados do homem, mas porque o Cristo é crucificado perpetuamente enquanto o pecado perdurar. O dito: “estou decidido a não saber nada além desse único mistério – Cristo Jesus e Sua crucificação”, significa a doutrina do Panteísmo. Pois isso significa que Deus está em todas as criaturas, e que elas são de Deus, e que Deus, como Adonai, sofre nelas. (1)

            “Quem é, então, Adonai? Adonai é a Palavra Dual, a manifestação de Deus na Substância, que manifesta a si mesmo como Espírito encarnado e,

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assim se manifestando, por amor redime o mundo. Ele é o Senhor que, crucificado desde o início, encontra sua plena manifestação no verdadeiro Filho de Deus. E, portanto, está escrito que o Filho de Deus, que é Cristo, é crucificado. Somente onde o Amor é perfeito, a Empatia é perfeita; e apenas onde a empatia é perfeita pode alguém morrer pelo próximo. Razão pela qual o Filho de Deus diz: “Os erros do próximo me ferem, e os açoites no próximo recaem sobre minha carne. Sou ferido com as dores de todas as criaturas, e meu coração é perfurado junto com o coração delas. Não há ofensa feita que eu não sofra, nem qualquer erro pelo qual eu não seja atingido. Pois o meu coração está no peito de toda criatura, e o meu sangue corre nas veias de toda a carne. Sou ferido na mão direita pelo bem dos homens, e na mão esquerda pelo bem das mulheres; em meus pés direito e esquerdo, pelos animais da terra e pelas criaturas das profundezas; e em meu coração por todos”.

            “O Crucifixo, então, é o mais divino dos símbolos porque é emblema do Cristo e sinal de Deus no homem. É a alegoria da doutrina do Panteísmo de que o homem se torna perfeito – a alma se torna Deus – através do sofrimento. Aquele que é sábio compreende; e aquele que compreende é iniciado; e aquele que é iniciado ama; e aquele que ama conhece; e aquele que conhece é purificado. E o puro vê a Deus e compreende o Divino, com o mistério da dor e da morte. E porque o Filho de Deus ama, ele tem poder, e o poder do amor redime. Ele ao ser elevado, atrai todos os homens para si. Esse é o mistério dos Sete Degraus do Trono do Senhor. E o próprio Trono é branco, de uma glória que ofusca o olhar. E em meio a essa Luz está aquele cuja aparência é a de um cordeiro que foi sacrificado. E ele é Cristo nosso Senhor, a manifestação de Adonai, cujo amor o impulsionou em todos os momentos. A ele é dado todo o poder de redimir no céu e na terra. Pois ele abriu seu coração a todas as criaturas, e livremente doou a si mesmo por elas. E por que ele amou, trabalhou e não se lamentou, mesmo na morte. E porque ele trabalhou ele era forte, pois o amor trabalhava dentro dele. E sendo forte ele conquistou, redimindo-as da morte. Elas não foram perdoadas porque Cristo morreu; elas foram mudadas porque ele amou. Pois ele lavou suas almas, tornando-as brancas com sua doutrina, e purificando-as com seus feitos. E esses feitos são o sangue de seu coração, e mesmo o verbo de Deus e a vida pura. Essa é a redenção de Cristo e o perpétuo sacrifício do filho de Deus. Crê e serás salvo: pois aquele que crê é transformado da imagem da morte para a vida. E aquele que crê não peca mais, e não oprime mais. Pois ele ama como Cristo amou,

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e está em Deus e Deus está nele. O sangue de Cristo purifica de todo o pecado, não pela compra do perdão com o ouro de outra pessoa, mas porque o amor de Deus mudou a vida do pecador. O penitente salva a si mesmo através do sofrimento, da aflição e da correção de suas faltas. Através desses ele se ergue e sua vida é redimida. E é o Cristo que o redime, dando o sangue de seu coração por ele. É o Cristo dentro dele que toma suas fraquezas e suporta seus sofrimentos em seu próprio corpo na árvore. E o mesmo que vale para o antigo, é verdadeiro para os dias de hoje, e o será para sempre. Cristo Jesus é crucificado continuamente em cada um, até a vinda do Reino de Deus. Pois, onde quer que haja pecado, há sofrimento, morte e opressão; e onde esses estiverem Cristo se manifestará, e por amor trabalhará, morrerá e redimirá.”

            Nesse ponto, o som da minha voz me acordou, e a visão terminou. Mas, naquele instante, dormi novamente, e vi a infinita amplidão do céu, aberto, claro, azul e iluminado pelo sol, tudo no mais intenso grau. E através dele, em direção ao alto, voava uma águia como o lampejo de um raio na minha frente, e eu sabia que isso significava que com o afastamento da noção de Deus desse malefício que é o derramamento de sangue inocente, e com a natureza Divina recuperada, não há nada que impeça a aspiração da alma. (1)

 

NOTAS

 

(73:1) Paris, 31 de janeiro de 1880. Mencionado em Life of Anna Kingsford, Vol. I, pp. 323-325.

(75:1) Vide nota (4) à p. 68.

(77:1) Outro significado foi, posteriormente, mostrado a Anna Kingsford, como sendo o que era pretendido: “Representando a volta do espírito inspirador de Deus, a aparição da águia era (...) uma declaração enfática da natureza divina do que estava sendo expresso” (Life of Anna Kingsford, Vol. I, p. 325). S.H.H.

 

 

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