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Tradução: Daniel M. Alves
Revisão e edição: Arnaldo Sisson Filho

[Embora o texto em inglês seja de domínio público, a tradução não é. Esse arquivo pode ser usado para qualquer propósito não comercial, desde que essa notificação de propriedade seja deixada intacta.]

 

 

 

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Ensaios e cartas

 

8. A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM (1)

 

            1. (*) HÁ, em geral, tanta má compreensão quanto ao modus operandi do progresso da alma e, conseqüentemente, tanta controvérsia acalorada sobre essa questão entre os segmentos de espiritualistas, que sou levada, contrariando meu costume, a escrever e trazer a público uma breve recapitulação da antiga e verdadeira doutrina sobre esse crucial assunto.

 

            Recebi primeiramente essa doutrina, não de qualquer “espírito” ou “guia” externo ou controlador, mas do Espírito divino e interior, (2) sobre o qual algo será dito neste texto. Em seguida, descobri que a revelação assim feita a mim não era nova, mas estava contida e formulada na Cabala hebraica, na filosofia Hindu e não menos claramente nos mistérios do Egito e da Grécia.

 

            O homem é um ser de duas partes, compreendendo em si mesmo uma personalidade celestial e uma terrestre. O ser interno – celestial – é dual, e essa dualidade é composta de Alma e Espírito. A personalidade externa também é dual, e é terrena e evanescente. As partes que a constituem são o Corpo e a Aura astral. Na Cabala, os três primeiros desses elementos constituintes do homem são chamados, de dentro para fora – Yechidah (ou Chokmah), Neschamah e Ruach (a anima bruta), e dessa última a parte externa, ou sombra, é denominada Nephesch.

 

            2. Os quatro elementos constituintes da natureza humana reaparecem sob muitos símbolos em todas as escrituras sagradas. No Gênesis eles aparecem primeiro de forma alegórica como os Quatro Rios, cujos nomes, para um iniciado, são suficientemente significativos, [NT: Pisom, Gion, Tigre e Eufrates. Gênesis 2:10-14] e em Ezequiel [NT: 1:5-10] e no Apocalipse [NT: 7:11] são representados com as Quatro Faces da Criatura Vivente;

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de cujas faces aquela da águia representa o Espírito (Yechidah); aquela do anjo ou mulher representa a alma (Neschamah); aquela do leão representa o espírito astral ou mundano (Ruach e Nephesch); e aquela do boi representa o corpo.

 

            3. Nos Mistérios egípcios e gregos, essas quatro personagens foram as Personas ou Máscaras do Drama Sagrado representado nos templos cavernas onde os ritos de iniciação eram realizados.

 

            Esse drama sagrado, não é necessário dizer, formou o padrão e protótipo da encenação dos mistérios dos primeiros tempos cristãos, os quais, até épocas tão distantes quanto o século dezessete (XVII), ainda era continuado em países católicos.

 

            Essas peças sagradas, quer “pagãs” ou cristãs, eram representadas em pantomima, isto é, apenas por gestos, e ocorriam no festival do Nascimento do Sol, tanto como Mitra, Baco ou Cristo. Elas continuam até nossos dias, vulgarizadas como a pantomima do Natal, mas preservando, no entanto, com maravilhosa exatidão, cada detalhe e cada acessório de sua versão original sagrada.

 

            4. Seus quatro personagens nos são conhecidos como o Arlequim (o Espírito), a Colombina (a alma) – esses dois representando a dualidade celestial; o Palhaço (o espírito mundano), e Pantaleão (o corpo) – esses dois últimos representando o dualismo externo ou terreno.

 

            O Arlequim, como seu protótipo antigo, está sempre mascarado, o que sugere, portanto, que ele é invisível e sem nome. Ele veste com uma roupa brilhante de muitos tons, típico do Arco Íris Celestial, ou sete Espíritos Divinos e seus vários Matizes. Ele carrega um bastão ou cetro, o bem conhecido cetro dos Mitos sagrados, o símbolo da vontade e do poder Divinos.

 

            Com esse cetro ele realiza qualquer transformação que ele deseje. Ao tocar nos objetos com o cetro, ele transforma suas aparências, e os remove ou os troca de lugar. As vontades das pessoas com as quais ele entra em contato são suscetíveis de serem por ele controladas, e conforme o desejo de seu possuidor elas adquirem novas percepções ou perdem seus sentidos.

 

            A esposa de Arlequim, Columba – a pomba ou alma humana – é sua companheira inseparável. Ela é bela, etérea e obediente a todos os seus comandos, mas, se ela não estiver com o cetro de seu esposo, ela sozinha não pode operar maravilhas. Ele é o Ser brilhante, o que a tudo permeia, o todo poderoso; ela é sua contraparte fiel e amável, divina apenas por ser sua.

 

            5. O espírito astral ou mundano é representado pelo Palhaço, cujas características são – diferentemente daquelas do par celestial – de uma natureza totalmente material. Ele é ágil, ardiloso, conhecedor das coisas do mundo e brincalhão. Não há nada de espiritual ou Divino a seu respeito; ele

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não tem qualquer poder de transmutação, e todas as suas maquinações são adaptadas a objetos baixos ou grosseiros. Resumindo, ele é a representação fiel da mente terrena. Sua cor característica é o vermelho, como é aquela do leão, cujo papel ele representa. Esse personagem controla e dirige seu companheiro inseparável, o Pantaleão ou corpo, que é sempre apropriadamente representado como uma criatura decrépita, tola e fraca, sem qualquer poder ou capacidade de antevisão.

 

            O corpo é, de fato, um mero escravo, a diversão da mente terrena, ou intelecto, e um objeto de desdém pelos personagens celestiais. O corpo, sob a mascara do Pantaleão, é mostrado como sendo apenas uma entidade fraca, se apoiando em uma bengala, enfermo, desagradável e continuamente golpeado. Ele é o bobo da peça, assim como o Palhaço, ou espírito mundano, é seu piadista ou trapaceiro.

 

            A pantomima, da qual essas quatro figuras são os personagens, inicia com algum prólogo ou alegoria mística, da qual o Arlequim e a Columbina, o Espírito Divino e a Alma, são o herói e a heroína. Normalmente eles são apresentados como príncipe e princesa, cuja fidelidade e amor mútuo atiçam a fúria e a inveja das deidades infernais, ou “fadas más”.

 

            Suas dificuldades – que não são outras senão as Provações dos Mistérios – formam a ação do drama, e a sua união final e eterna felicidade, que são consumados na “cena da transformação”, representam a meta suprema de todas as disciplinas e doutrinas religiosas, o Casamento do Espírito e a Noiva, que constitui o ato final da encenação dos mistérios conhecida como o Apocalipse do Adivinho.

 

            6. É claro que toda a ação da pantomima é, do começo ao fim, astronômica, e retrata a trajetória do sol através das doze casas zodiacais. Assim é que era, e ainda é, representada apenas na época do Natal, quando a trajetória do sol inicia.

 

            Doze é o número do ciclo solar ou masculino, assim como treze é o do ciclo lunar ou feminino. No “Tarô” de origem egípcia o número sagrado era o treze, pois era o de Isis, a deusa dos Mistérios Egípcios. Esse “Tarô” ainda sobrevive entre nós como o conhecido jogo de cartas, como M. Vaillant e Eliphas Levi demonstraram claramente. (1)

 

            O “Tarô” é composto de quarto naipes, dois dos quais são vermelhos e os outros dois pretos. Os vermelhos representam o dualismo Celestial, os dois pretos representam o dualismo Terrestre.

 

            Desses, o naipe de Diamante (ou Ouros), a pedra do Apocalipse, é o Espírito,

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ou Espírito Santo do Microcosmo humano, ou seja, Aquele essencialmente puro e brilhante.

 

            O naipe de Coração (ou Copas) é a alma, a morada da aspiração, do amor e do desejo – o elemento feminino do reino humano.

 

            O naipe de Espadas é a mente terrena, incisiva e inquieta, tal como seu símbolo cabalístico, o leão. Duro como o ferro e afiado como uma lâmina, o intelecto humano analisa, mergulha, penetra e ataca.

 

            Por fim, o naipe de Paus é o corpo, um símbolo que, como aquele do boi, transmite uma idéia de atributos físicos relacionados apenas à terra.

 

            7. Desses quatro naipes há três cartas da “Corte”, as quais, em sua ordem correta, são a Rainha, o Rei e o Valete. O uso moderno inverteu a ordem dos dois primeiros.

 

            A Rainha é Columba, a alma; o Rei é o Leão Astral, ou mente; o Valete é o corpo. Mas, dentre todos esses, o principal – que é ao mesmo tempo o Alfa e o Ômega de toda a série – é o Ás ou Unidade, que representa o Espírito primordial.

 

            Essa Unidade assume todos os “poderes” e está acima tanto da Rainha, quanto do Rei e do Valete. Ele é o Primeiro e o Último dos números, aquele cuja vontade é soberana e cuja supremacia é absoluta.

 

            8. A série de cada um dos naipes é de doze, correspondendo aos Doze Signos Zodiacais e aos Doze Trabalhos de Hércules, o herói solar. Na linguagem mística esses doze números representam os Doze Degraus da Regeneração, dos quais o coroamento e conclusão é o Décimo Terceiro Ato da Alma, isto é, o Casamento do Filho de Deus. Daí que o treze, representado pelo Às, é o número perfeito, e a ceia do casamento é, portanto, celebrada por treze personagens, a saber: Cristo e os Doze Apóstolos.

 

            9. A Unidade ou Ás, em Grego, é chamado de Nous. Essa palavra, como Bryant demonstra, é idêntica em significado com o nome Noé ou Noah, o arquiteto da Arca ou Microcosmo.

 

            Os três filhos de Noé: Sem, Jafé e Cam são os representantes, respectivamente, da alma, da mente e do corpo.

 

            Desses três, o mais sagrado e o mais nobre é Sem, a alma, o senhor do Oriente e o progenitor da raça escolhida.

 

            Jafé, como a mente, é apropriadamente o pai das nações européias, proeminentes na civilização intelectual e na arte inventiva; enquanto que a Cam, ou o corpo, é atribuída a paternidade das raças anteriores.

 

            “Amaldiçoado é Chanaan (Cham, ou Cam)”, diz o oráculo, “como servo dos servos ele será”. Aqui temos uma repetição da condenação dirigida ao velho Adão, o qual, de fato, Cam simboliza.

 

            O corpo, mero pó e terra perecíveis, é o servo tanto do Espírito, como da alma e da mente. Seu pai e seus irmãos o dominam, o controlam e o subjugam. A história do crime

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por meio do qual Cam, ou o corpo, trouxe essa maldição a si mesmo é outra versão da alegoria do Éden, e se refere à materialização dos mistérios sagrados, ou, em outras palavras, refere-se ao pecado da idolatria.

 

            Os segredos do Espírito Divino, Noé (Noah) ou Nous, são profanados por uma classe sacerdotal materializadora e de mentalidade mundana, e que, em conseqüência disso, se tornou grosseiramente equivocada e ridícula – passível de crítica e chacota. As verdades espirituais são distorcidas e substituídas por significados físicos, e aquilo que pertence tão somente ao celestial é, de forma idólatra, representado como pertencendo ao corpo e às coisas fenomênicas e terrenas. A esse Cam, Cham ou Chanaan, foi atribuído, no simbolismo egípcio, o naipe de Paus, ou emblema da geração terrena.

 

            10. Agora, quanto aos dois dualismos do reino humano, um é o trans-migratório, o outro não é. O corpo e o elemento astral do homem são renovados a cada sucessivo nascimento, e a cada morte eles se vão, o corpo ao pó, e a mente astral, de acordo com seus méritos, vai para o “paraíso” das regiões mais elevadas do astral, ou para as sombras das tristes regiões mais baixas, ou infernais do astral.

 

            Esse “paraíso” é conhecido pelos místicos como o Éden Inferior. Lá, depois da morte, habita o Ruach, ou espírito mundano do homem bom, retendo todas as memórias e afeições daquela vida sua.

 

            Daquele lugar ele vem para o círculo de seus amigos ainda encarnados, ele dá provas de sua identidade, abraça e acaricia os que lhe são queridos e lhes relata as belezas e bem-aventuranças da luz astral na qual fez sua morada, e por meio da qual ele criou jardins, palácios, córregos e formas animadas. Esse espírito mundano é uma entidade pessoal e, de fato, é o Ego externo do homem, o “Eu” e o “Mim” do personagem cujo nome de família ele ainda carrega.

 

            11. Mas o gérmen essencial do Microcosmo, a partícula Divina dual, constituída de alma e Espírito, muito raramente retornam à terra dessa maneira. É apenas em ocasiões solenes e para fins especiais – tão raros a ponto de serem acontecimentos – que tal retorno é permitido.

 

            Esse par celestial constitui o fogo transmigratório, cuja luz compõe o “Karma” Hindu. Essa díade celeste é que representa a individualidade Espiritual do homem. Ela representa uma condição ou ser em distinção a uma entidade, a soma total daquilo que é o homem, em distinção àquilo que ele parece ser.

 

            Essa essência – que é imortal e evolutiva em sua natureza, por ser a um só tempo Divina e humana – segue em frente e reanima novas formas. O nome desse Ego interior não é aquele do Ruach, que responde pelos nomes de batismo ou familiares da terra; seu nome é conhecido apenas por Deus. Ele segue em frente de uma forma para outra, e de encarnação em encarnação, até que ele

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alcança o Nirvana. As circunstâncias e condições de um renascimento representam, portanto, como nos diz o Bhagavad Gita, o Karma das existências anteriores.

 

            12. O Nirvana é a aniquilação da personalidade exterior, e a apoteose da individualidade interior. Dessa forma é verdade que a existência é um mal, ou melhor, é o supremo mal. E libertar-se desse mal é a contínua meta e aspiração do santo – um mal cuja extinção é encontrada, por fim, apenas no seio de Deus.

 

            Quando, portanto, um homem diz, como os não reencarnacionistas gostam de dizer: “eu não gosto da idéia de uma sucessão de nascimentos”, ou “eu não desejo retornar”, ou “eu não retornarei por minha própria vontade”, é o eu externo que fala, o Ego do Ruach. Deixemos que ele fique contente, ele não retornará. Ele irá para o “paraíso”, para os Campos Elíseos – para o Éden Inferior. (1)

 

            Mas seu interior, sua partícula Divina, se algum dia for alcançar a beatitude, obedecerá a Vontade Divina, e continuará o curso de suas existências, sejam poucas ou muitas, até o Matrimônio final do Espírito com a Alma. Uma vez consumado esse ato, ele se torna por meio disso purificado da existência, e entra na condição do ser absoluto.

 

            Nessa breve exposição, eu evitei deliberadamente todas as referências diretas às Escrituras sagradas, seja Hebraica, Hindu ou outra, com o objetivo de não sobrecarregar minha apresentação com citações.

 

                                                                                              ANNA KINGSFORD, M.D.

 

P.S. – Depois que o artigo acima foi lido por mim para meu grupo privado, um amigo me enviou uma cópia do The Theosophist de outubro de 1881,

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o qual eu não tinha visto anteriormente. Ele contém, sob o título de “Fragmentos da Verdade Oculta”, a essência do ensinamento que eu mesma recebi de uma fonte totalmente independente e interior. Na grafia dos nomes bíblicos, eu sigo a versão católica das Escrituras. A.K.

 

 

NOTAS

 

(184:1) Artigo escrito por Ana Kingsford e publicado em Light, 1882, p. 127. Ele foi o resultado de um debate sobre a reencarnação que foi suscitado pelos Espíritas, e no qual ela e Edward Maitland tomaram parte. (Ver Light, 1882, pp. 103-105 e 111-113; Life of A.K., vol. II, pp. 49-50.) – S.H.H.

(185:2) Ver Prefácio pp. 3 e 7, ante.

(186:1) O Tarô original, de acordo com algumas autoridades no assunto, era composto de cinqüenta e seis lâminas ou “cartas”, as quatro adicionais sendo os cavaleiros. Esses cavaleiros representam o Nephesch, intermediário entre o “Rei” e o “Valete”, cujo elemento está usualmente incluído no símbolo do “Rei”. – A.K.

(189:1) Edward Maitland, respondendo a alguém que denunciou a doutrina da reencarnação como sendo “repulsiva”, diz:

            “A primeira questão a ser decidida é se ela é verdadeira. Se for, ela pode parecer repulsiva apenas se não for compreendida, uma vez que, como parte da ordem Divina, ela deve necessariamente fazer parte da perfeição dessa ordem.

            Da forma como eu a entendo, ela é tanto bela quanto verdadeira no mais alto grau, e é necessária para explicar os fatos, tanto da existência em geral como os de minha própria experiência em particular.

            E embora Swedenborg tenha falhado em alcançar a sua compreensão durante sua vida terrena, ela está contida em sua doutrina favorita da Correspondência. Pois está em concordância com a lei da Correspondência que tanto a alma, como o corpo, devem usar muitas vestes externas no decorrer de sua peregrinação, ‘mudando de corpos como se fossem vestimentas, e se despindo deles como de uma veste, ele mesmo permanecendo intacto enquanto eles perecem’. E é bem razoável supor que ele continue a fazer isso até que esteja suficientemente aperfeiçoado através das experiências do corpo, ao ponto de ser capaz de olhar além do corpo e apreciar as condições mais elevadas de ser”. (Light, 1882, p. 155) – S.H.H.

 

 

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